sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Enade: a questão é mais complexa,

por Suzana Borges da Fonseca Bins*

Na prova de história do Enade, apareceu a seguinte questão:

“Cidadãs de segunda classe? As melhores leis a favor das mulheres de cada país-membro da União Européia estão sendo reunidas por especialistas. O objetivo é compor uma legislação continental capaz de contemplar temas que vão da contracepção à eqüidade salarial, da prostituição à aposentadoria. Contudo, uma legislação que assegure a inclusão das cidadãs deve contemplar outros temas, além dos citados.

São dois os temas mais específicos para essa legislação:”

A seguir, apresentavam-se as alternativas e a resposta correta era letra A: aborto e violência doméstica.

Meu primeiro pensamento, em seguida descartado, foi de que o governo não perdera a oportunidade de, subliminarmente, fazer presente sua visão abortista, induzindo, com uma questão sobre a União Européia, os alunos a pensarem que possibilitar o aborto às mulheres equivaleria a lhes conferir cidadania. Entendi que o governo de meu país não se prestaria a um ato abominável de manipulação, sutil, do pensamento dos jovens: seria muita baixeza.

No entanto, a questão está em pauta e é polêmica. Por isso mesmo, penso que algumas considerações são importantes. Vamos a elas.

Cidadão, segundo o Houaiss, é “um indivíduo que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhes permitem participar da vida política”. Portanto, antes de se pensar em aborto, há que se pensar em garantir moradia, alimentação, escolaridade, trabalho, salários dignos. Isso faz com que mulheres e homens deixem de ser de segunda classe e passem a ser cidadãos no pleno sentido da palavra. A questão, como se vê, é mais complexa.

A questão é mais complexa. Trabalha, subliminarmente, com a concepção de que a mulher tem direito a fazer o que quiser com seu corpo, mas não traz à tona a verdade irrefutável de que aquela vida que se encontra em seu útero não é seu corpo, mas um outro corpo que no seu se abriga, uma vez que, sendo ainda muito frágil, precisa de um lugar em que esteja protegido de qualquer perigo (!).

Insinua-se, sutilmente, que, legalizado o aborto, muitas mulheres que morrem vítimas de abortos clandestinos teriam direito a atendimento de qualidade, garantindo, assim, sua vida. No entanto, deixa-se de dizer que a garantia de sua vida dever-se-á à morte de outra. De acordo com a ciência, sabe-se que, do momento em que o óvulo foi fecundado, até o momento em que o embrião começa a desenvolver a placenta, tudo o que ocorre é feito sem a interferência da mãe: a única interferência a ela possibilitada é expulsar o embrião e impedir que se desenvolva. Ele é um ser vivo, sobre o qual a Constituição assegura o direito à vida. É verdade que o texto fala na União Européia, mas há o texto oculto. A questão é mais complexa.

Por isso, a questão da prova, embora possa refletir o pensamento da União Européia, é lamentável, porque induz a erro de raciocínio e manipula o pensamento dos jovens, levando-os, subliminarmente, a acreditar que a plena cidadania das mulheres, que as tiraria da segunda classe, passa, inquestionavelmente, pela legalização do aborto.

Conferir cidadania às mulheres passa por muitas outras instâncias, que, sem sombra de dúvida, não a do aborto. Se assim fosse, seria o mesmo que defender a idéia de que, para acabar com a fome, é preciso matar os famintos, e não investir numa agricultura forte e numa distribuição mais igualitária de renda. Como se vê, a questão é muito mais complexa.

*Professora

14 de novembro de 2008 | N° 15789Alerta - Jornal ZERO HORA, de Porto Alergre-RS
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2293484.xml&template=3898.dwt&edition=11097&section=1012