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Continua-se a negar o reconhecimento de direitos reais a quem não defina sexualmente sua relação não matrimonial com um companheiro
A constituição de uma família sempre foi protegida pelo Estado por facilitar que as próximas gerações fossem ter, de modo geral – leis são sempre generalizações, por valerem para todos –, uma célula familiar estável nos anos de sua formação. Para falar de maneira mais vulgar, um papel social importantíssimo da instituição do matrimônio é evitar que o marido troque a mulher de 40 por duas de 20, garantindo a sua presença na casa e evitando que a mulher tenha que criar os filhos sozinha. O matrimônio garante o futuro.
O reconhecimento do matrimônio pelo Estado não é, portanto, o reconhecimento de um afeto presente, sim de uma instituição natural que prepara a ordem social futura. Ao contrário, até: um papel importante do matrimônio é garantir que não seja o afeto a formar e desfazer as relações de acordo com os ventos, exigindo que se mantenha o compromisso assumido de estar ao lado do cônjuge nos bons e nos maus momentos. Nos bons é fácil; nos maus só se permanece por senso de responsabilidade, e para isso é bom que haja ajuda.
O objetivo da proteção estatal do matrimônio é protegê-lo contra os afetos que vão e vêm, contra o desejo sexual que muda de alvo, para que a criança não chegue à idade adulta tendo passado por vários padrastos e sem conhecer um pai. Mais vale proteger o matrimônio agora que construir cadeias no futuro.
Um objetivo secundário, que sempre poderia – se o Estado deixasse – ser obtido de outras maneiras, é garantir que o patrimônio comum construído em comum não seja arrancado do cônjuge que sobrevive à morte do outro. Ou seja: a proteção do passado.
A ideia que parece ter orientado os votos do STF é, contudo, completamente diferente. O que se tem é uma celebração do afeto e da sexualidade presentes, que são premiados com o reconhecimento de direitos patrimoniais (que não têm nada a ver com sexo ou afeto) sem que seja assumido qualquer compromisso com o futuro.
Não se garante, contudo, o patrimônio construído em comum por pessoas que não tenham relações sexuais (duas irmãs solteironas que morem juntas, uma comunidade hippie ou religiosa, dois amigos etc.). É o sexo que se torna gerador de direitos.
Legisla-se sobre “uniões homoafetivas”, ou seja, uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo, e dá-se a essas uniões os mesmos direitos da chamada “união estável”. É a celebração do sexo e do afeto no presente, sem cuidado com o futuro.
Ao equiparar a “união homoafetiva” ao matrimônio light já existente na “união estável”, mostra-se, definitivamente, que o Estado não está interessado em garantir o futuro, sim em meter o bedelho em afetos e relações sexuais existentes, que não são nem poderiam ser da alçada dele.
Não sei, caro leitor, se lhe interessa ter ministros do STF, juízes, deputados e burocratas em geral no seu quarto. A mim não interessa; a minha vida sexual e afetiva não é da alçada do Estado.
É uma ingerência totalitária querer legislar o sexo e o afeto. É uma injustiça e uma perversão criar por lei paródias sexocêntricas da célula familiar, orientadas para o presente e não – como o matrimônio – para o futuro, concebidas e definidas em torno de emoções passageiras e da vida sexual. Para piorar, continua-se a negar o reconhecimento de direitos reais a quem não defina sexualmente sua relação não matrimonial com um companheiro.
Se o patrimônio construído em comum sem sexo continua sem proteção e ao mesmo tempo não há mais proteção da instituição matrimonial, mais valeria eliminar todo o direito de família, acabar com o casamento civil, a união estável e o que mais inventem, e tratar tudo como sociedades contratuais. Assim, pelo menos, o Estado não teria desculpas para se meter na cama das pessoas.
Carlos Ramalhete é professor e filósofo.