Não fosse a exposição da carnificina, também a retórica (o que procuro evitar), publicaria aqui todas as mensagens que chegam me esculhambando porque, como é público e notório, oponho-me ao aborto. Barack Obama, seguindo a cartilha majoritária do Partido Democrata, acaba de suspender as restrições de financiamento público a entidades que promovem tal prática. Antes dele, Bill Clinton, titular dos dois primeiros dos “três mandatos” clintonianos, fez o mesmo. Os republicanos Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho impuseram restrições. Vá lá... A questão, nos EUA, obedece à lógica pendular. No Brasil, o debate a respeito é permanente. A VEJA desta semana traz uma ampla reportagem a respeito. Ali estão expostos fatos, dilemas morais, éticos, religiosos e histórias pessoais às vezes dramáticas. Acompanhem com atenção os que estão dispostos a algum diálogo — sim, porque há os que não estão, e, nesse caso, textos são inúteis. Compreendo algumas posições muito duras de quem se opõe ao aborto na certeza de que se pratica um assassinato. Afinal, diante da morte, qual é o relativismo possível? Mesmo assim, tenho coibido algumas manifestações cuja agressividade não ilumina — antes turva as convicções. Mas, confesso, a defesa agressiva do aborto e a falta de disposição para o diálogo de seus partidários me são um tanto assustadores. Muito bem: a) eles não consideram o feto ainda uma vida — em algum estado da natureza, aquela coisa deve estar (eles não querem saber qual); b) acreditam que é uma questão que diz respeito ao direito das mulheres; c) deploram as convicções religiosas de seus adversários etc. Certo, certo. Tudo ainda muito compreensível. O que não entendo — e não entendo mesmo — é o núcleo moral desta a escolha, a saber: o que faz alguém se tornar militante pró-aborto? Qual é, vamos dizer, o seu TODO FILOSÓFICO de que tal defesa tão ativa É PARTE? Escandalizava-me, à época da questão Terri Schiavo (lembram-se?), que pessoas saíssem às ruas pedindo o desligamento dos aparelhos — embora os pais da moça se dispusessem a cuidar do seu “vegetal” (como ela era chamada). Mas a lei disse que eles não tinham direito a seu “pé de alface”, a seu “aspargo”, a “gerânio”... Tenho, sim, abrigado a divergência no meu blog sobre essa e outras questões, nos limites, já disse, do que considero aceitável. Mas não é possível que os defensores tão entusiasmados do aborto não se lembrem ao menos de ser decorosos, reconhecendo que, em cada história que leva à interrupção da gravidez, há uma rotina de sofrimentos. Até onde o tratamento tão ligeiro dispensado ao feto não traduz também ligeireza no trato com os já nascidos? E também me parece que chegou a hora de os defensores do aborto saírem daquele lugar confortável em que se colocaram, de onde, com, parece-se, obtusidade moral e filosófica, sentenciam: “As restrições ao aborto são todas de natureza religiosa, e a sociedade é laica”. Acho que não, acho que não... UM - O fato de que a maioria das denominações cristãs considere que a vida tem início na concepção não desobriga os não-religiosos de tentar responder quando começa a vida. E tal resposta se faz necessária para se saber quando se está ou não se está (do ponto de vista deles) lidando com a morte. Ou se vai chegar ao horror a que se chegou nos EUA? O agora presidente Obama, antes senador, votou a favor de verbas para grupos que promovem o chamado “aborto com nascimento parcial”, realizado no último trimestre de gravidez, às vezes aos oito meses. Façam uma pesquisa. Nem Cícero conseguiria usar a retórica para distinguir aquilo de homicídio, agravado pela torpeza e crueldade. Mesmo os defensores do aborto têm de dizer a partir de que momento ele não seria mais permitido. E, ao estabelecer tal tempo, dizer por que não. Ao definir o momento do “não”, será preciso especificar as razões por que antes se diz “sim”; será preciso definir por que os óbices de um aboerto aos seis ou sete meses de gestação inexistem aos dois; DOIS – É curioso que os defensores do aborto que atacam a perspectiva que seria puramente religiosa dos seus adversários acreditem que só mesmo a religião poderia se interessar em proteger o feto. Pergunto-me, um tanto espantado, se o humanismo laico não pode alcançar a concepção, protegendo-a. SERÁ QUE UM ATEU OU AGNÓSTICO ESTÁ IMPEDIDO DE SER CONTRÁRIO AO ABORTO PORQUE ISSO CORRESPONDERIA A SER CONTRÁRIO À RAZÃO? Ora, ora... Nós, os cristãos, somos um conforto para essa gente, não? “Ah, isso é coisa daqueles carolas, daqueles papa-hóstias, que querem impor o seu modelo e a sua visão de mundo para toda a sociedade, que é LAI-CA” (alguns fazem escansão de sílabas na esperança de que eu acabe concordando com eles...). Não, não... Com todo o respeito, deixem de preguiça moral e ética. Creio que o “amor pelo homem”, ainda que sem Deus, esteja obrigado a se pronunciar sobre a proteção à concepção. TRÊS – Mesmo no caso do chamado aborto de anencéfalos, há uma questão de princípio que não pode ser mitigada. Os preguiçosos pensarão: “Huuummm... Vai morrer logo mesmo, não têm chance, então é melhor abortar”. Os mais cuidadosos hão de pensar: “Isso nos coloca diante de algumas questões: - quando uma vida é viável ou não? - temos o direito de determinar a duração dessa viabilidade? - estabeleceremos que só se fará a interrupção no caso de anencefaria? - a medicina avança; e crianças com vida prevista de apenas um ano? Devem nascer ou não?; - e fetos que, nascidos, sobreviverão, mas se tornarão crianças com terríveis deformidades, que implicarão sofrimento para os pais e até para si mesmas? Devemos poupar toda essa gente do sofrimento, fazendo o que o Deus deles não costuma fazer? SERÁ MESMO QUE OS CRISTÃOS SÃO ESSES SERES MOSTRUOSOS, QUE QUEREM IMPOR A FERRO E FOGO O SEU PONTO DE VISTA? SERÁ MESMO QUE OS DEFENSORES RADICAIS DO ABORTO ESTÃO FLERTANDO APENAS COM UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA, HUMANA, TOLERANTE E PLENA DE DIREITOS? |
Por Reinaldo Azevedo |
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/ |