quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O ABORTO NO PARAÍSO TERRESTRE

Ogeni Luiz Dal Cin*

Reduzido o ser humano a “produtor” e “consumidor”, segundo as exigências do “sistema econômico-financeiro”, a produção representa o princípio da realidade e o consumo, o princípio do prazer. Todo o bem consiste em não perder de vista que viver é produzir e consumir, podendo, esse binômio, ser traduzido juridicamente em deveres (e obrigações) e direitos. Assim, a única e verdadeira crise é a crise de ordem econômico-financeira, a crise ontológica por excelência, pois as demais, apenas epifenomênicas, atingem somente valores que são meros sentimentos subjetivos, de ordem cultural ou religiosa, pouco importando na efetiva conquista do bem-estar.

Neste contexto existencial, perde o sentido maior a discussão a respeito do valor da vida humana como bem ontológico de todos. Com efeito, o sistema internacional, acima do bem e do mal, controla o planeta Terra com a finalidade de propiciar o máximo de produção e de consumo. Ele é o senhor que financia os meios e impõe limitações ao direito de existir de certos seres humanos, sob o sofisma de que é para o bem de todos. Por isso, tem o direito de controlar, livremente e sem constrangimento, o consumo de todos os seres humanos, estabelecendo os que devem ser descartados, antes ou depois de nascer. Nada nem nunca houve algo de tão típico da chamada “consciência burguesa”, hoje também uma das mais altas bandeiras das esquerdas, “filhotas” do marxismo.

Os “abortistas” têm verdadeira ojeriza ao livro da Bíblia, principalmente à concepção de Deus pessoal, Deus da vida, e pela transcendência do paraíso prometido a todos enquanto conquistado na efetiva ação histórica concreta de promoção de toda vida humana. Em nome do empenho de conquistar o paraíso terrestre, sinônimo da felicidade individual e coletiva, fechado exclusivamente no tempo e só para o tempo, os “abortistas” seguem, pregam e impõem a “religião atéia” dos que comandam o “Sistema da Terra”. Apresentam, por isso, como inevitável e normal a doutrina que autoriza a matar os nascituros indesejados, podendo, contudo, chegar aos nascidos improdutivos. Tudo como exigência inquestionável da “Mãe-Terra” que condiciona, assim, a entrada na habitação do paraíso terrestre, sem culpa, sem dor, sem miséria, manifestando o grande poder representado pelos senhores da morte, quer no Brasil, quer no exterior. Esta, a nova consciência humana a ser pregada e difundida pelos “abortistas”. Mesmo não sendo explícita, no início, a ordem é a de cortar qualquer ligação com Deus transcendente, com a consciência moral natural que daí decorre, para relativizar todos os valores fundamentais insertos na ordem jurídica. É que o direito à vida, em última instância, acabará, logicamente, a se reduzir, para os “abortistas”, a uma questão meramente religiosa, isto é, de uma religião de teísmo transcendente, já que a defesa última dos que propugnam pelo aborto, a rigor, também é religiosa em seus pressupostos ontológicos e em sua pregação salvífica. Esta a maior irracionalidade da pretensa racionalidade dos “abortistas”.

O aborto é um sofisma. Não é o direito à vida inerente ao valor do ser humano. Para os “abortistas”, o direito à vida, fora do binômio produtor/consumidor – que por si é garantia de vida -, reduz-se às ligações afetivas entre as pessoas, donde nasce a dor da perda, a única que subjetivamente importa. Assim, o nascituro ainda não é conhecido para possibilitar ligações afetivas mais completas e complexas, tornando menos aguda a sua destruição e destinação para o lixo. A mãe, aconselhada e induzida a matar seu filho nascituro por agentes especializados, e que, com isso, decide pelo abortamento, não verá nada. E, no entanto, ainda que este não deixe vestígio algum de que existia de fato, que era alguém, um ser humano, esta mãe dificilmente conseguirá livrar-se da culpa. Se o nascituro sofre ao ser assassinado, pouco importa, pois ninguém vê sua dor e seu instinto de viver, porque tudo é feito por um profissional da morte a serviço do sistema envolvente – e as ligações afetivas ainda não são tão profundas e amplas. Além disso, outros profissionais da morte se encarregam da limpeza psicológica na mãe e familiares. Tudo no mais absoluto silêncio, na maquinação sigilosa entre quatro paredes, bem longe da mídia. E o Governo brasileiro, como já se manifestou favorável ao direito de matar crianças não nascidas, não só endossa esse modelo de sociedade, mas promete recursos financeiros necessários para as mães executarem seus filhos nascituros, mesmo não existindo, atualmente, verbas para atender a um padrão mínimo da saúde. Espera apenas a autorização legislativa.

Tudo isso porque o direito à vida não é mais um direito do ser, mas é apenas o conjunto das ligações afetivas do ser com a mãe, com seus familiares e seus amigos. Um bom apagador, químico ou psíquico, das ligações afetivas resolve o problema da vida e da morte, viabilizando definitivamente o paraíso terrestre movido pelo impulso do Sistema da Produção e do Consumo, não mais existindo, então, pobres, culpa, dor, angústia, pois nem Deus será mais necessário. E, finalmente, ninguém mais ousará discutir a necessidade da prática do aborto, pois tudo estará sob os olhares bondosos do Estado provedor da felicidade.


* Ogeni Dal Cin é advogado e filósofo, Membro da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP.