Geremias do Couto
Poucos em nosso arraial conseguem vislumbrar que, por trás da liberação das pesquisas com células-tronco, as portas ficarão escancaradas para a aprovação do aborto. Caso o Supremo Tribunal Federal decida favoravelmente, quando voltar a se reunir para deliberar sobre a inconstitucionalidade da lei de biossegurança, não haverá mais nenhum empecilho constitucional para impedir que o aborto se torne uma prática de pleno direito em nosso país. Tudo já está orquestrado.
Como a Constituição assegura o direito à vida, a possibilidade do apoio ao aborto legal fica implícito no argumento que o ministro Carlos Ayres Brito, relator do processo, empregou para defini-la. Ele pressupôs que a Constituição não é precisa sobre a vida na fase embrionária e arrematou: "Vida humana, com personalidade jurídica, é fenômeno que ocorre entre o nascimento e a morte". A prevalecer a sua tese, encerra-se toda a discussão sobre quando a vida começa e fica firmada a jurisprudência: vida, só com personalidade jurídica, ou seja, apenas após a criança nascida, mesmo que esta já esteja plenamente formada no ventre materno. É ou não é a porta escancarada para a aprovação do aborto?
Por outro lado, para abrir caminho à liberação das pesquisas com células-tronco, apela-se para o emocional, reunindo-se deficientes físicos na porta do STF, como se já houvesse certeza de que elas resolverão as anomalias congênitas ou qualquer outra que apareça durante a vida. Alimentam-se também sofismas como se fossem verdades incontestáveis para provar que qualquer um que se levante contra a liberação das pesquisas com células-tronco está impedindo o progresso da ciência ou se escudando em argumentos religiosos para impedir que doentes sejam tratados com as supostas descobertas que as pesquisas trarão para a humanidade. Somos retrógados. Intolerantes. Fanáticos.
É o que se depreende da entrevista que a bióloga Mayana Zatz concedeu semana passada à revista Veja, com a intenção de defender as pesquisas com células-tronco embrionárias. Ela simplesmente lançou mão de argumentos que, à primeira vista, parecem irrefutáveis, mas não resistem a uma simples análise lógica, para ficar apenas por aí.
Diz ela, entre outras coisas, que "os cientistas brasileiros só querem fazer pesquisa com os embriões congelados que permanecem nas clínicas de fertilização", os quais ficarão ali até ser descartados, pois "não existe nenhuma possibilidade de vida para eles". Absurda inverdade, que, de tanto ser repetida, acaba sendo aceita como fato. Ora, há diversos casos de embriões congelados que, depois, foram implantados em algum útero "generoso" e se tornaram bebês perfeitamente saudáveis. Se não há possibilidade de vida, como afirmou a bióloga, como então se explica isso?
O que dizer de Vinícius, um pequeno brasileiro sadio que permaneceu congelado por oito anos até ser implantado no útero da mãe? E de Laina Beasley, nos EUA, que passou 13 anos como embrião "descartável" e hoje alegra a sua família? Há, inclusive, uma entidade nos Estados Unidos (http://www.embryoadoption.org/) cuja especialidade é atuar na "doação" e "adoção" de embriões congelados que têm, sim, chances de nascer em perfeitas condições de saúde. Não, não é verdade, doutora Mayana, que os embriões congelados não têm nenhuma possibilidade de vida. A senhora cometeu um grave erro de informação!
A doutora Mayana Zatz repete também o surrado argumento de que não há "consenso sobre quando começa a vida", numa referência aparentemente correta, pois os especialistas divergem entre si quanto a esse ponto. Para ficar apenas com duas diferentes opiniões, ela, por exemplo, pressupõe que a vida começaria quando o sistema nervoso já estivesse formado, enquanto outros concordam que esse começo ocorreria apenas a partir do momento em que o córtex cerebral estivesse em condições de cumprir o seu papel. Mas a verdade é que se o mundo existir daqui a um milhão de anos eles não terão chegado a nenhum acordo pela simples e única razão de que a vida uterina até o nascimento é um processo que se inicia, para dizer o óbvio, quando o óvulo é fecundado e só se completa quando o feto está pronto para nascer.
A partir do momento em que os 23 cromossomos masculinos se juntam aos 23 femininos aí se dá o start. Essas "divergências" são apenas sofismas para tentar encobrir um fato: a vida se inicia na concepção, da mesma forma como um processo começa exatamente quando ele começa. Não começa nem no meio, nem no fim. Ou faria sentido afirmar que a partida de futebol só tem início no momento do gol? Será que perdemos o senso de lógica? Pois é o que eles nos querem empurrar goela abaixo quando dizem que não há consenso sobre quando a vida começa. Querem com isso pressupor que o jogo jogado antes do gol não é jogo, embora o juiz tenha apitado o início da partida e as regras digam que o jogo tem início nesse momento.
Outra pressuposição equivocada da bióloga é quando ela diz que não se podem confundir células-tronco embrionárias com aborto, que, praticado, ocorre quando "há uma vida dentro de uma mulher", diferente do que acontece com aquelas, que são retiradas de embriões gerados pela fertilização in vitro através da reprodução assistida. Segundo essa lógica, se não houve fertilização natural, não haveria nenhum problema ético no emprego dos embriões gerados artificialmente. A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, em entrevista concedida à mesma revista esta semana, segue o mesmo raciocínio, tendo inclusive declarado o seu voto favorável às pesquisas, quando a sessão foi suspensa semana passada com o pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Direito. Segundo ela, "o nascituro, a criança que aguarda o nascimento no ventre da mãe, tem algumas expectativas de direito" e cita a herança como exemplo, para, logo a seguir, acrescentar: "Ora, o embrião criado in vitro não é nascituro, pois não foi implantado no útero da mãe, nem pessoa, no sentido técnico". Entenda-se pessoa, no sentido técnico, a criança já nascida, com personalidade jurídica, como vimos acima.
O sofisma aí é que só teriam então algum direito - não todos - os embriões gerados no útero, na condição de nascituros. Mas que diferença têm esses embriões daqueles que são gerados in vitro? Para começar, eles são iguais em tudo, pois vêm da mesma matéria prima: a junção do espermatozóide com o óvulo. Eles cumprem, também, no útero, as mesmas etapas que cumprem os embriões gerados artificialmente. Com a fecundação, transformam-se em zigotos para logo depois virarem blastocistos, circunstância em que os embriões são já reconhecíveis num prazo máximo de 10 dias! Ou seja, nenhuma diferença! A única distinção é que aqueles se desenvolvem naturalmente e estes artificialmente em razão de o especialista repetir in vitro os mesmos processos que ocorrem na procriação natural. Só por isso os embriões gerados no útero - por terem algum direito, segundo a perspectiva da ministra - seriam cidadãos de primeira classe, com alguma perspectiva de proteção, enquanto os artificiais - pobrezinhos! - estariam fadados ao lixo, como estão, caso ninguém se compadeça deles para adotá-los! Ou seja, fora do útero podem ser dilacerados, rasgados, dissecados para pesquisa, dentro do útero não! Mas será verdade isso? Veremos.
Concluo - por já ter-me alongado bastante para um blog - desmascarando a falácia de que as pesquisas com células-tronco embrionárias garantem a descoberta de tratamentos para muitas doenças hoje incuráveis. Não há até agora nenhuma publicação científica que diga ter encontrado o rastro que leva ao ouro! A própria doutora Mayana admite em sua entrevista que não há, ainda, como controlar essas células. Veja o que ela diz ipsis literis: "eu injeto células-tronco para regenerar o músculo de alguém, mas essas células resolvem que vão virar osso. Se isso acontecer, não tenho mais como controlar o processo". Esse é o fato. O resto é hipótese. Mas concedendo à ciência o direito que ela tem de avançar em suas pesquisas, não é por falta de células-tronco que os cientistas ficarão a ver navios, caso o Supremo Tribunal Federal acate a inconstitucionalidade da lei que permite o uso de células-tronco embrionárias, tese, infelizmente, pouco provável. As células-tronco adultas estão disponíveis e cumprem o mesmo papel como material de pesquisa, caso o propósito seja exatamente esse.
Mas não é por aí que a história caminha. A liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias é apenas uma porta de passagem para a aprovação do aborto, pois o nascituro (já vimos há pouco), dispõe apenas de "algumas expectativas de direito" - não todas - e uma pessoa só é considerada vida humana, como interpretou o ministro Carlos Ayres Brito, após o nascimento. Em outras palavras, embriões artificiais e embriões naturais estão na mesma condição: os primeiros poderão ser dissecados em pesquisas, os segundos poderão não muito depois ser legalmente abortados.
Que triste fim!
Fonte: Blog Geremias do Couto
Divulgação: www.juliosevero.com