Dra. Alice Teixeira Ferreira
Prof. Hermes Rodrigues Nery
Rubem Alves, em artigo publicado neste espaço da Folha de São Paulo (01/04) defendeu um conceito reducionista, relativista e retórico de justiça, que merece uma reflexão mais aprofundada. Primeiramente indica uma "encruzilhada entre o certo e o errado, entre o lado da vida e o da morte", que "só acontece nos textos da lógica". Ora, diante de um impasse da história, o filósofo grego Sócrates optou pela cicuta pois o que estava em jogo na decisão era a sua própria vida e a dignidade da vida humana como valor a justificar o sacrifício e a renúncia. Foi isso que fez Salomão optar por aquela que realmente se importou pela vida, pois as decisões fundamentais, nesse sentido, irrompem do coração humano e da razão, para afirmar o amor incondicional pelo bem de quem se ama, para além das sutilezas da lógica.
As "encruzilhadas entre o certo e o errado" acontecem na realidade concreta do dia-a-dia, nas contingências do cotidiano, na vida vivida por cada um de nós, das quais ninguém consegue escapar de situações (cujas decisões-respostas não podem ser relativizadas) em que é preciso dizer sim ou não, sem meio termo.
De fato, as circunstâncias da vida nos colocam diante de dolorosos impasses. E o imperativo da consciência nos leva a discernir e a aceitar, muitas vezes, o heroísmo que transcende o comodismo, para além do hedonismo e do individualismo, tornando o livre-arbítrio capaz do dom de si para o bem do outro.
Realmente, "a ética católica é a ética dos absolutos", daí porque "todos os abortos são assassinatos", como o é também a morte dos embriões humanos, negando ao novo ser humano os direito à vida, como se quer hoje no Supremo Tribunal Federal. Como bem expressou Giogio Filibeck, "a dignidade do ser humano ou é integral ou não é". Se somos pela vida, a opção fundamental é pela vida por inteiro, e não com cortes arbitrários a satisfazer a lógica do pragmatismo utilitário.
Nesse sentido, a ética católica em muito ajudaria Sofia em seu impasse, retratado pelo filme de Alan J. Pakula. Forçada a ter de entregar um de seus filhos para morrer no campo de concentração, Sofia (interpretada por Meryl Streep) não chegou a propor ao oficial nazista a sua própria vida em troca da salvação das crianças. Faltou-lhe naquele momento a radicalidade do heroísmo, como hoje acontece o mesmo quando crianças são atiradas pela janela, jogadas recém-nascidas nas latas de lixo, ou os nascituros torturados até a morte pelas máquinas de sucção no ventre de suas mães, sem "padecer de dores morais ou de incômodos de consciência", no dizer do Ministro Carlos Ayres Britto ao negar ao nascituro o direito à vida.
O fato é que a transgressão moral tem efeito cascata. Hoje o nascituro não é reconhecido como pessoa humana, amanhã é o idoso ou o inválido, ou o deficiente, ou ainda os que têm criatividade e pensamento crítico sobre determinadas ideologias do sistema social. "Um erro puxa outro erro", nos advertiu Macbeth. A escolha de Sofia evidenciou a dificuldade (ou até a impossibilidade) de acertar na escolha, quando se adere à transgressão moral. Hitler invadiu a Polônia e mandou para o campo de concentração e trabalhos forçados os que não aceitaram transgredir. É evidente que - do ponto de vista moral - podemos resistir e não compactuar com o mal. O pai de Sofia e toda a sua família foram covardes, porque se aliaram aos nazistas. Daí começa a tragédia de Sofia. Ao ceder sua filha, ela sacrificou o que ainda lhe restava de humanidade. Se fosse firme e não cedesse (ou seja, se amasse igualmente ambos os filhos) e não se acovardasse em aceitar a posição nazista, talvez o oficial visse nela a dignidade da pessoa humana e a história poderia ser diferente. Cabe lembrar outro filme, "Uma mulher contra Hitler", dirigido por Marc Rothemund, em que temos também uma personagem chamada Sofia (interpretada por Júlia Jentsch) vivida sob o impasse de fazer sua escolha em meio ao horror do regime nazista. Pertencente ao grupo Rosa Branca, de resistência ao führer, Sofia Scholl mantém-se firme em sua decisão pela honra e pela dignidade da vida, sendo presa e decapitada pela Gestapo, juntamente com seu irmão Hans Scholl.
A experiência de Vitor Frank, por exemplo, no campo de concentração nos faz entender porque os nazistas perdiam respeito pelos judeus presos, pois a maioria se despia de sua humanidade. O que a história comprova é isso: diante da degradação moral, o que prevalece é a lógica do vale tudo pela sobrevivência, quando sacrifício e renúncia não conta mais pelo bem do outro, muitas vezes um bem maior.
Somos hoje também desafiados a fazer a nossa "escolha de Sofia", em meio às novas ideologias totalitárias que querem espoliar a nossa alma, destituir a nossa dignidade enquanto pessoa, privar a nossa vida do valor e do sentido humano, oprimir, perverter e manipular as nossas consciências, para que aceitemos falsas ilusões. A nossa resistência, portanto, começa, sim, pela defesa dos mais indefesos, como dos embriões humanos e dos nascituros, pois queremos a vida para todos e por inteiro.