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Sábado, 13 de Setembro de 2008
Dom Odilo P. Scherer
Acompanhamos, nessas últimas semanas, as audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em vista da eventual legalização do aborto nos casos de fetos ou bebês com anencefalia. O debate, por vezes, torna-se apaixonado, perdendo o foco e a noção da gravidade daquilo que está em jogo.
Não se trata, com certeza, de uma partida entregue às torcidas a favor ou contra, pois está em jogo a vida ou a morte de seres humanos. Nem é o caso de fazer uma lei nova, pois quem está sendo interpelado é a Corte Suprema, que deve dizer se a Constituição Brasileira permite ou não a realização do aborto de seres humanos afetados por anencefalia. A Constituição, no caput do artigo 5º, garante “a inviolabilidade do direito à vida aos brasileiros e estrangeiros residentes no País”. Isso é vago, é verdade.
A lei brasileira ainda não assegura cidadania nem direitos aos não-nascidos; é uma lacuna e estaria na hora de o Congresso votar um adequado estatuto para os nascituros (daqueles que ainda não nasceram). Mesmo assim, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe: “Toda pessoa tem o direito a que se respeite sua vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção” (art. 4°). E nossa Constituição confirma: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte” (cf. art. 5° § 2°). Não me consta que isso tenha sido revogado.
O Estado brasileiro é laico, sem uma definição religiosa. Isso é claro. Mas a sociedade brasileira não é laica, ela é pluralista e ninguém poderia ter a pretensão de representar a única opinião aceitável num Estado laico, que não impõe à sociedade um pensamento único. Como bispo da Igreja católica, exponho meu pensamento em coerência com a antropologia e a postura moral da minha Igreja, que é clara: não é lícito tirar a vida de ninguém; com boa segurança em evidências científicas, entendo que um bebê anencéfalo é um ser humano vivo, por isso sua frágil vida deve ser respeitada, mesmo que sua sobrevivência após o nascimento seja muito breve. Aplica-se aqui o 5° mandamento do Decálogo: “não matarás”, uma lei antiga e civilizatória; religiosa, mas nem só religiosa pois no progresso das civilizações esse preceito ético fundamental foi assimilado nos códigos da maioria das nações e também na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
Fico feliz quando vejo a posição da Igreja católica associada à defesa da estrita inviolabilidade da vida humana, mesmo ainda não nascida. Que isso fique registrado para o futuro. Mas aqui não se trata de defender um interesse da Igreja: a proteção da vida humana inocente e indefesa deveria interessar a todos, acima de concepções religiosas ou ideológicas; é questão de humanidade, não apenas de religião. Também por isso a postura da Igreja católica não se fundamenta apenas no seu pensamento religioso e suas convicções não se chocam necessariamente com o bom direito ou a ciência, nem estão fechadas para valores universais, compartilhados também com outros grupos religiosos e mesmo com ateus. Na defesa da vida não se deveria cair no ardil de contrapor argumentos de “religiosos” e de “não religiosos”; a desqualificação imediata do interlocutor “religioso” poderia ser discriminação religiosa.
No caso dos anencéfalos, a meu ver, duas questões são determinantes: são seres humanos, ou não? São seres humanos vivos, ou já mortos? Entendo que as duas interrogações têm respostas positivas e, por isso, o tratamento jurídico e humano deve ser conseqüente. É sobre o status humano do feto ou bebê anencéfalo que se vai decidir; tudo o mais é secundário: o tempo de sobrevida, a perfeição do corpo, do cérebro ou de outro órgão, o aspecto estético, os sentimentos ou expectativas de outras pessoas... A inviolabilidade da vida é um direito primeiro.
De toda maneira, à luz da sã razão, outras indagações pertinentes também precisam ser feitas: Os anencéfalos têm uma dignidade humana a ser protegida por lei? A dignidade de um ser humano reside apenas em sua racionalidade bem funcionante? O resultado do eletroencefalograma deveria ser considerado o critério decisivo para declarar a morte dos anencéfalos? Como afirmar que está morto um feto que, com toda evidência, se desenvolve no seio da mãe? A certeza da brevidade da vida, após o nascimento, é argumento válido ou suficiente para antecipar a morte do bebê durante a gestação? O feto ou bebê anencéfalo possui uma grave patologia, ou ele próprio é a patologia que deve ser eliminada? O direito da mulher grávida ao bem-estar está acima do direito do bebê à sua frágil vida? A decisão sobre o aborto deve ser deixada somente à mulher? A mãe de um bebê anencéfalo fica mesmo aviltada em sua dignidade, ou não é a sociedade que acaba consagrando mais um preconceito social e cultural contra a dignidade e o respeito que merecem estas mulheres? A situação da mulher grávida de um bebê anencéfalo pode, honestamente, ser comparada com uma tortura? Liberar o aborto dessas frágeis criaturas humanas representa um verdadeiro progresso da humanidade, uma bela vitória da civilização e da cultura dos direitos humanos? Afinal, que mal cometeram os bebês anencéfalos para que se trame contra a vida deles?
A decisão do STF terá conseqüências, pois consagrará princípios para a posterior jurisprudência. E aí vai mais uma pergunta: depois dos anencéfalos, qual será o próximo grupo de “incompatíveis com a vida”, de incômodos e indesejados na lista da eliminação?
Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo