Quarta-feira, Setembro 03, 2008
Reinaldo Azevedo
Não adianta. Quando há uma metafísica influente a ditar a pauta da imprensa, por mais que a realidade grite uma coisa, os jornalistas concluem o contrário sem a menor cerimônia. Com alguma freqüência, a conclusão errada tem o auxílio de um número, tirado de alguma pesquisa.
O Estadão, com uma cobertura de política sempre tão competente — especialmente daquele espécime tão particular chamado Homo brasiliensis —, deixa-se tomar, em algumas áreas, por certa vocação dita "progressista" que se espalha por aí, a pôr viseiras nos jornalistas, que confundem a realidade com o desejo. Vamos ver.
Na página A 20, o jornal publica uma reportagem (de fato, o texto foi originalmente produzido para o Jornal da Tarde) em que se lê o seguinte título: “Jovem inicia vida sexual antes dos 15 e tem mais de um parceiro”. Bati e olho e pensei: “Pô, que gente precoce! No meu tempo, só uma minoria era assim tão avançadinha”. Decidi ler a reportagem e a pesquisa.
Antes, uma consideração técnica para o leitor que não é da área. Em títulos, jornalistas lidam com o chamado “ser genérico”. Aquele “jovem” do título não é “um jovem” definido, mas “o” jovem geral — vale dizer, “os jovens”. Assim, quando se emprega esse genérico, ou o termo se refere a uma maioria expressiva, ou o título está errado. Se o editor escolheu nos informar que “Jovem inicia vida sexual antes dos 15...”, é preciso que a pesquisa tenha constatado que essa é a realidade da grande maioria dos pesquisados. Vamos adiante.
Prestem atenção ao primeiro parágrafo do texto que trata da pesquisa: “Usar a pílula do dia seguinte ou ter relações sexuais com vários parceiros ao longo da adolescência são atitudes que fazem parte do cotidiano do jovem brasileiro de classe média com idade entre 13 e 16 anos. Pesquisa realizada com 6.308 alunos de escolas particulares de todo o país revela que 22% deles perderam a virgindade”.
Epa!
Quer dizer que a pesquisa revela que 78% dos jovens entre 13 e 16 anos AINDA NÃO PERDERAM A VIRGINDADE? Alguém me dê uma explicação razoável para que 22% determinem o título de uma reportagem, e 78% sejam ignorados. Quer dizer que menos de um quarto do universo pesquisado pode falar pelo ser genérico “o jovem”, mas os mais de três quartos não podem? Digam-me: dada essa lógica da generalização, o título correto, então, não seria este: “Jovem se mantém virgem até os 16 anos”?
Há um outro mimo de edição que merece ser comentado: um quadro tenta fazer uma apresentação rápida da pesquisa. Aí se vê lá:
Iniciaram vida sexual antes dos 12 anos
12,2% dos homens
5,7 das mulheres
Iniciaram vida sexual aos 12 anos
7,5% dos homens
3,2% das mulheres
Iniciaram vida sexual aos 13 anos
19% dos homens
13,6% das mulheres
E assim vai...
Em nenhum momento fica claro no quadro que essas percentagens referem-se àquela minoria de menos de um quarto que já iniciou vida sexual. Se o leitor bater o olho no título e no quadro apenas, o que não é incomum, ficará com a informação errada, erradíssima.
Por que isso acontece? Há uma decisão, uma deliberação, de torcer a pesquisa? Olhem, fosse assim, seria menos preocupante. Porque bastaria um pito, e as pessoas fariam a coisa certa. É coisa mais séria: há uma “cultura” dita “progressista” que determina o viés. Vocês sabem: jornalista sempre consultam “especialistas”. E os “especialistas” também falam ao Estadão. Segundo a síntese da reportagem, eles “alertam os pais para que não fechem os olhos à nova realidade da juventude”. Huuummm... Que nova realidade? Seria a nova realidade da esmagadora maioria de virgens entre 13 e 16 anos?
Schopenhauer definiu 38 estratagemas que podem ser empregados para vencer um debate mesmo sem ter razão (*). Hoje em dia, há um 39º muito influente: recorrer a algum número. Coloque porcentagens em bobagens monumentais, e a maior asnice passa por verdade sagrada. O número tanto pode ser flagrantemente distorcido, como no caso acima, em que a minoria é tomada por maioria, como se pode empregar um dado circunstancial, transitório, como se fosse o ponto de chegada de uma tendência, com todos os fatores que a determinam permanecendo vigentes no futuro — é o caso em que um número não se distingue da futurologia da Mãe Dinah: um bom exemplo é a escatologia finalista do aquecimento global.
Esse é um caso apenas que flagrei no Estadão, um jornal, no mais das vezes, de alta qualidade. Há outros por aí. O que vai agora tem alcance geral, não vale só para a imprensa. Vocês sabem: o Brasil precisa ser “progressista”. Nem que, para isso, seja preciso mentir um pouco...
(*) Leia Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão (editora Topbooks), de Schopenhauer. A edição tem introdução, comentários e notas de Olavo de Carvalho).