Jornal O SUL - 31/08/2008
ALEXANDRE MUSSOI MOREIRA
Desembargador do Tribunal de Justiça do RS
As questões éticas mais relevantes, no que diz respeito aos anencéfalos dizem respeito ao aborto, indução de parto prematuro, alocação de recursos para assistência pós-natal e doação de órgãos para transplantes, sendo que qualquer avaliação das mesmas passa, necessariamente, pela consideração da humanidade dos bebês.
Embora se afirme que o embrião ainda não é uma pessoa humana, no sentido pleno da expressão, como também não é o recém-nascido ou a criança antes do uso da razão, é inegável que se trata de um “vivente” humano, eis que sua vida está programada para ser humana e desenvolver-se como tal. O embrião, desde o primeiro momento, tem personeidade (estruturas antropológicas para tornar-se pessoa), mas ainda não pessoalidade (as estruturas ainda não foram levadas à expressão quanto ao sujeito). Em outras palavras, já é estruturalmente pessoa, embora não o seja atualizadamente, porque a estrutura pessoal ainda não se desenvolveu plenamente, mas está programado para isso, enfim, trata-se de um membro da família humana (JUNGES. Bioética : perspectivas e desafios . São Leopoldo: UNISINOS, 1999.).
A defesa do respeito absoluto a esse novo ser não está no fato de ser pessoa, pois para tanto lhe faltariam requisitos, mas na sua “ascrição” ao gênero humano, na solidariedade ontológica de todos os seres humanos.
‘Pessoa’, resumidamente, é o indivíduo consciente, dotado de corpo, razão e vontade, autônomo e responsável. Salienta-se a autonomia da pessoa como sujeito moral, porque aqui enxerta-se toda a tradição kantiana, ainda hoje importante na dinâmica do desenvolvimento da conscientização dos direitos humanos. É óbvio que, nem o embrião, nem sequer o feto, nem o louco que perdeu, de vez, o uso da razão e do juízo, nem o comatoso em fase final, responde a esta definição da pessoa. Então a pergunta é: em virtude de que podemos atribuir dignidade pessoal a estes seres que não se enquadram na definição comum e admitida de pessoa? A resposta da ciência atual é: pela ‘ascrição’, isto é, pela atribuição de certa dignidade pessoal, outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar de eles não satisfazerem os critérios da definição clássica da pessoa, sujeito racional, livre autônomo e responsável (LEPARGNEUR. Bioética, um novo conceito. São Paulo: Loyola,1996, p. 44.)
A solidariedade ontológica dos seres humanos se baseia na identidade de espécie, ou seja, seres humanos são gerados por seres humanos sexualmente diferenciados, havendo uma herança genética, relacional e cultural, a ser preservada e atualizada, que imbrica uma dívida de cada ser humano com os seus semelhantes. Dívida esta que aponta para o fato de que o desrespeito ao semelhante é desrespeito a si mesmo.
De outro lado, a genética moderna veio a demonstrar que todas as células somáticas (como o próprio nome dá conta, constituem o “soma”, o corpo), sem nenhuma exceção, possuem o mesmo genótipo, têm a mesma informação genética. Assim, qualquer célula humana contém todo o DNA responsável pelo desenvolvimento do ser humano. (AZEVÊDO. Aborto. In A bioética no século XXI. GARRAFA et COSTA (Orgs.). Brasília: UnB, 2000)
Demonstrado que o genótipo presente nas células somáticas é o mesmo presente no zigoto, evidencia-se não existirem diferenças genéticas entre o recém-concebido e o adulto, o que vem em reforço da referida identidade ontológica existente entre os seres humanos.
A posição de LEJEUNE é ainda mais incisiva, no mesmo sentido, v.g.: “No princípio do ser há uma mensagem, essa mensagem contém a vida e essa mensagem é a vida. E se essa mensagem é uma mensagem humana, essa vida é uma vida humana.”(LEJEUNE, Jérôme. Genética humana e espírito. - Conferência pronunciada no Senado Federal, em 27.09.1991.. Brasília: Senado Federal, 1992, p. 8).
O principal argumento em favor da liberação do aborto de anencéfalos está a inviabilidade de sobrevivência da criança, bem como a possibilidade de aproveitamento de órgãos através de transplantes, entretanto deve-se considerar, além do que foi exposto, quanto à dignidade do ser em gestação, que existem casos de sobrevivência por períodos significativos – mais de ano, por exemplo, além de ser, esta situação de inviabilidade, pelo menos em tese, a de muitos doentes internados em UTI’s, não se propondo, por isso, sua morte (eutanásia).