O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais
provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um
ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável
mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve,
se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que
nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas,
essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem
cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como
qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas
condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência,
abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o
direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com
segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita
correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome
de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto,
aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz
de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo
o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de
praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.
Se esse argumento é evidente por si
mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje
em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo
aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de
apreender a noção de "espécie". Espécie é um conjunto de traços
comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez
para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos.
Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não
nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a
portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do
século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.
A opção pelo abortismo exige, como
condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o
abortista, a condição de "ser humano" não é uma qualidade inata
definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem,
a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem
decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social,
não a natureza das coisas.
O grau de confusão mental
necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os
abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus
argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios),
porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como
presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação
catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede
que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados
mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de
quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.
Com toda a clareza que se poderia
exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente
autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser
humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.
Não espanta que pessoas capazes de
tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da
consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de
prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com
insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua
querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e
venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem
ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.
Seria
tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o
compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma
espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável –
concessão da sua parte.
Também não é de espantar que, na
ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de
mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para
enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões,
baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que
fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito
ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção
entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades?
Uma deformidade mental traz a outra embutida.
Aristóteles aconselhava evitar o
debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras
elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria
de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no
fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que
seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de
sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de
parecer que não o são.
http://www.olavodecarvalho.org/semana/101014dc.html