Numa democracia o jogo político-jurídico funciona assim: a maioria faz as leis em conformidade com a Constituição. O Supremo Tribunal Federal órgão de cúpula, está situado no topo do Poder Judiciário, e como tal tem o mister de zelar pelo cumprimento da Constituição. Neste sentido é pacífico na doutrina jurídica ocidental que o Supremo é um tribunal contramajoritário, isto é, um tribunal que compete dentre outras coisas defender a minoria contra o uso abusivo de leis produzidas pela maioria, já que é consentâneo que o poder da maioria tende naturalmente a oprimir a minoria. É o que dizem os bons livros de Direito Constitucional da atualidade.
Pois bem. Na democracia, o Supremo Tribunal Federal não cria leis, cumpre-as. O Supremo não é legislador é julgador, e julgador nos moldes da Constituição. No caso dos anencéfalos que está sendo julgado no STF, o que se pretende (e parece óbvio que vão conseguir, já que está 5x1) é a título de uma suposta “defesa” de uma minoria (as mães cujos fetos padecem de anencefalia) criar-se mais uma hipótese de inimputabilidade pela prática do aborto, ou seja, a criação de uma nova hipótese legal sem a intervenção do poder legislativo, único legitimado a inovar leis numa democracia.
O plenário do Supremo Tribunal Federal interrompeu, no início desta noite, o julgamento em que a maioria ao revés de utilizar a expressão “aborto”, preferiu o eufemismo da expressão “antecipação do parto”, o que ao final é o mesmo: aborto, morte de inocente, já que o anencéfalo é, portanto, existe.
O ministro Lewandowski, sexto a votar, disse inicialmente que os valores a serem preservados nos casos de aborto, são a vida do nascituro e a vida e a incolumidade psíquica da gestante. Segundo ele, o legislador isentou de pena o aborto em apenas duas hipóteses (artigo 128 do CP): o “necessário ou terapêutico” (perigo de vida par a mãe) e o “sentimental” (decorrente de estupro). Bravo, uma ilha de lucidez!
Para Lewandowsi, dado o princípio básico da “conservação das normas”, é possível a “interpretação conforme” a Constituição, mas sempre na “lógica do razoável”. Segundo ele, anencefalia é, na verdade, falta de “parte” do cérebro, difícil de ser avaliada, e o STF não pode modificar ou interpretar uma lei aprovada pelo Congresso (o Código Penal), abrindo condições para “abortos em série”.
Lewandowski, argumentou e bem, no sentido de chamar a atenção para o fato de que o assunto é tão “complexo” que há vários projetos de lei em tramitação no Congresso sobre a descriminalização do aborto. Depois de citar alguns desses projetos, ele reafirmou que — se o Legislativo está tratando da matéria — o Judiciário não pode “legislar”, o que ocorreria no caso de uma “interpretação conforme” do Código Penal. Segundo ele, isolado em meio há cinco votos favoráveis ao aborto do anencéfalo, o STF não pode “criar uma nova norma, usurpando a competência do Congresso”. Enfim, pura acuidade!