domingo, 11 de maio de 2008

Critério de morte = critério de vida?

Por Henrique Cal

Apresentando o tema:

Formulando um resumo analítico, poderíamos agrupar as tentativas de argumentação pró-pesquisa (pelo menos aquelas que tenham aparência de seriedade intelectual, diferente de todos os não mencionados) em duas sentenças: “o embrião estocado em laboratório não seria vida humana porque não está num útero materno”; e “o embrião não poderia ser dito ‘humano’ antes de ter sistema nervoso, já que o diagnóstico de morte para fins clínicos vem justamente com a morte encefálica”. A primeira me parece ser facilmente refutável ao se abrir qualquer livro moderno de Embriologia [1] ou simplesmente com as definições aristotélicas sobre substância e acidente (que qualquer não filósofo pode entender): o fato de uma substância – o embrião – possuir determinada natureza – a humana – não se altera de acordo com seus acidentes, como o lugar que ocupa – o útero materno. (Ou seja: não é o fato de o embrião estar dentro ou fora do útero que o caracteriza como humano ou não humano, pois o lugar que ele ocupa é só um detalhe que o acompanha, não modificando a sua natureza.) Por outro lado, estou particularmente interessado em fontes que auxiliem a contra-argumentar a segunda idéia apresentada. É um raciocínio tolo, no meu entendimento, e explico as razões a seguir.

REFUTANDO OS ARGUMENTOS:

1º) Apesar de parecer “lógico”, não há qualquer definição da Medicina, nem da Biologia nem do Direito neste sentido, sendo esta dedução, portanto, no máximo uma opinião arbitrária. Para ser considerável, é necessário mais do que parecer lógico: é preciso, por exemplo, a opinião de especialistas sobre a questão que compreendam a fundo os seus precedentes teóricos e as suas implicações práticas; por enquanto, infelizmente, não encontrei muita coisa escrita (na internet está disponível o depoimento do médico legista Antônio José Eça, que também falou na audiência pública do STF no ano passado [2]). Afinal, nem sempre é válida uma conclusão tomada a partir da leitura inversa de uma afirmativa do tipo causa-conseqüência; para dizê-la com segurança, é preciso antes analisar cuidadosamente as relações que cada um dos termos estabelecem entre si e se a formulação proposta se confirma de algum modo na realidade externa ao silogismo. Assim, até agora isso só é um critério de morte, e não “critério de vida” (esta ingênua confusão pode ser explicada como um dos típicos enganos dessa cultura da morte em que vivemos).

Critérios?

E ainda que pretendessem resolver a questão com este golpe tipicamente reducionista, permaneceria a dúvida: a qual ponto específico da formação do sistema nervoso estariam se referindo? Seria quando surge o primeiro neurônio a partir de uma célula indiferenciada do embrião? Ou só quando se formasse todo o complexo sistema nervoso? Aliás, não esqueçamos que nosso sistema nervoso ainda está em formação após o parto. E deveria ser quando surge o sistema nervoso periférico (quando ele então talvez já pudesse conduzir estímulos dolorosos) ou quando se forma o sistema nervoso central (com o qual ele já poderia ter pensamentos)? A propósito, há realmente a certeza de que ele realmente pode sentir dor ou pensamentos? Se alguns acham que sim, como provar? (O vácuo na resposta é prontamente preenchido por um improvisado porém justo “não sei, mas se ele já puder sentir dor, então é melhor não arriscar”. O interessante é que muitos dos que pensam assim não empregam o mesmo raciocínio para condenar o aborto nem adotam o simples e honesto argumento moral do “não sei se é vida ou não, então é melhor não arriscar”. Parece que são “gavetas de raciocínios” diferentes que etiquetam o mesmo objeto de discussão, o embrião humano, de acordo com os objetivos diferentes de cada situação. Em qualquer caso, temos esta lamentável postura: o embrião humano reduzido a um mero “objeto de discussão”.) Ninguém pode provar qualquer uma destas postulações porque o embrião não pode comentá-las; qualquer ensaio de resposta a estas questões é pura opinião arbitrária, arriscada de repente e que talvez convença a um ou outro desavisado leitor. [3]

2º) É no mínimo razoável a necessidade de se aplicar um critério particular a quem esteja em condições particulares. Como poderíamos aceitar a aplicação do critério de morte encefálica a um ser que não possui encéfalo? Parece-me uma trapaça intelectual! Não seria isso uma classificação extremamente imprópria e imprudente, comparável à absurda covardia de quem sugerisse, por exemplo, desafiar os recordes de um atleta de olimpíadas usando os de um atleta das para-olimpíadas? Este tipo de argumento assemelha-se a um sofisma da parte dos que já são a favor do uso de embriões para tentar convencer os que leigos que “pegaram o bonde andando” da discussão e não têm muitos elementos para identificar este engodo.

Comparação inadequada

De qualquer modo, já numa verificação superficial desta analogia entre os dois estados – o embrião ainda sem cérebro e a morte encefálica – podemos criticar a sua sustentabilidade: o dano encefálico que caracteriza a morte clínica é uma situação irrecuperável, enquanto que as circunstâncias do embrião são exatamente opostas a isso, sendo não só favoráveis à vida como programadas para gerar vida. Isto é, a princípio não há o que fazer com o indivíduo em morte encefálica, pois não há uma “próxima etapa”; mas o embrião tem todas as etapas por seguir, não exigindo que façamos qualquer coisa senão lhe garantir condições mínimas para que ele atualize as suas potencialidades. Portanto, a comparação é inadequada e absurda.

3º) Esta afirmação de que a vida humana só começaria com a formação do sistema nervoso é puramente ideológica. Afinal, ela vai diretamente ao encontro de uma insinuante e perigosa corrente das neurociências que defende a figura do “sujeito cerebral”, na qual você, caro leitor, é nada mais do que o seu próprio cérebro (veja bem: por esta visão, o ser humano não só possui um cérebro que comunica seus aspectos imateriais com o mundo material, mas sim o cérebro é o próprio ser humano). Uma outra afirmação, a de que “o embrião ainda sem tecido neural não possui consciência” representa uma ideologia que parece ser influenciada pela hipótese de separação entre mente e corpo da filosofia cartesiana; mas a idéia do sujeito cerebral, intrínseca a muitas interpretações enviesadas de descobertas neurocientíficas, vai além disso ao excluir qualquer aspecto imaterial do ser humano. Penso que esta é apenas uma nova face dos velhos materialismos, que agora usa de novas descobertas da biologia para improvisar justificativas para seus dogmas infundados. Apesar disso, imagino que este assunto será, no futuro, um tema da Bioética tão pertinente quanto é hoje a questão do aborto, por exemplo. Isso porque a definição sobre “o que é o ser humano” precede e inspira muitas outras questões bioéticas (inclusive a de “quando se inicia um ser humano”), embora esta definição faça parte de uma discussão tão ampla e profunda que, em última análise, poderia ser considerada a pergunta principal da qual parte toda a Filosofia.

Discussão paralela

Quem entrar neste debate, provavelmente percorrerá algumas etapas básicas, previsíveis num diálogo deste tipo. Primeiramente, qualquer pessoa concordaria com uma explanação correta que parte do puro bom senso: pode-se dizer perfeitamente que o embrião não possui as disposições de uma pessoa humana adulta, mas seria absurdo dizer que o embrião humano não é humano; para isso teria que ser provado que, de um embrião humano, pode se desenvolver um elefante, uma ameba, um burro ou qualquer coisa diferente de um ser humano. Num segundo momento, entretanto, os materialistas poderiam dizer que não se trata disso, mas sim de que o cérebro é quem dá todas as características de um ser humano, o que poderia, segundo eles, ser provado pelas crescentes descobertas da neurociência que cada vez mais explicam os fenômenos humanos com resultado apenas do funcionamento das sinapses neurais – vide tantos ramos derivados para explicar biologicamente o comportamento humano, como a neuro-economia, o neuro-marketing, neuro-psicanálise e quem sabe até neuro-religião? De fato, o respeito que o radical “neuro” evoca ao dar substratos biológicos para fundamentar uma tese funciona como uma autoridade gigante e invencível, visto o efeito automático que o título de “científico” tem em nossa época. Em seguida, uma ponderação pelo outro lado mostraria que é muito mais razoável assumir os inequívocos fenômenos cerebrais não como a causa dos fenômenos humanos, mas sim como a forma como estes se dão no cérebro – afinal, como estamos discutindo dentro do âmbito das coisas materiais, é óbvio que as coisas imateriais deveriam necessariamente ter alguma manifestação material para que fosse possível serem analisadas, ainda que de um modo parcial, pelas ciências experimentais. A partir deste ponto, porém, a discussão se perde em explicações não científicas e inevitavelmente tende para as visões pessoais que cada um de nós tem sobre os diversos aspectos da vida, da psicologia humana, da religião, passando a exigir respostas que fogem do campo de análise das ciências experimentais. (Abaixo, envio um artigo que fala um pouco mais sobre isso, intitulado “As perguntas que a ciência não pode responder”, acompanhado de um breve resumo que montei dele.)

Ato e potência

Sem um consenso na área biológica, ainda poderíamos usar os conceitos filosóficos de ato e potência. De boa intenção, poderíamos contra-argumentar os materialistas que dizem que o embrião é apenas um “montinho de células” lembrando-lhes que ele é sim um ser humano, só que em potência. Frente a isso, uma horda de céticos e pragmáticos se levantaria alvoroçada bradando toda a sorte de sentimentalismos ao mostrar os deficientes físicos (que infelizmente acabem sendo usando como massa de manobra) e profetizando que a pesquisa com células embrionárias é sua única esperança e que estes deficientes são seres humanos em ato e não só em potência como são os embriões, e que por isso demandariam mais atenção urgentemente etc. Não obstante o sofrimento destas pessoas, é preciso ressaltar que o embrião também já é sim um ser humano em ato, pois possui todas as características de um ser humano em seu genoma, sendo assim um ser humano em uma etapa de se desenvolvimento, como, aliás, o é qualquer pessoa que conhecemos, inclusive nós mesmos. O máximo que podemos dizer é que o embrião não é um ser humano com cérebro, porque ainda não desenvolveu este órgão, e nunca o possuirá se impedirem de atingir as etapas naturais do desenvolvimento da espécie, para as quais ele existe.

Arbitrariedade

Deste modo, nenhum cientista ou jurista isolado pode querer, por motivos ideológicos ou pragmáticos, dar um ponto final neste tema, desprezando o fato de a questão permanecer indiscutivelmente em aberto ao longo dos séculos [4]. Se for lícito tomar decisões importantes baseados em suposições hipotéticas, então fechemos as faculdades de Biologia, de Filosofia e tantas outras disciplinas tão relevantes para o estudo do ser humano e que, não obstante seus postos indissolúveis, continuam apresentando divergências sobre este assunto.

O Estado manda?

Ainda sobre este terceiro argumento, sugiro inclusive que ele teria implicações legais. Isso porque é redundante discorrer sobre o fato de que este tipo de pensamento vai diretamente contra a existência da alma humana, uma vez que todos os aspectos imateriais do ser humano teriam sido suprimidos, sendo, como uns sugerem, puras ilusões provinda da fisiologia das sinapses neurais (o que configura-se mais uma das precipitadas investidas das ciências experimentais para além do seu justo campo de atuação). Neste sentido, uma hipotética adoção deste tipo de juizo por parte da Justiça não configuraria uma afronta às religiões brasileiras, que em sua maioria defendem a existência de aspectos imateriais do homem? Ora, um Estado laico não aquele que extingue ou denigre qualquer tipo de manifestação religiosa para eleger o ateísmo como sua opção. Diversamente, uma saudável laicidade deve configurar o Estado como democrático frente à pluralidade de convicções religiosas de seu povo, garantindo a convivência respeitosa entre os diferentes credos. Já um viés ideológico desta monta configuraria na prática uma cena inaceitável onde os poderes públicos estariam assumindo opinião em matéria de foro privado, da qual devem se abster. Ora, um cidadão pode e deve exercer seus direitos de pensar o que quiser sobre qualquer tema religioso, mas o Estado não pode de forma alguma arbitrar nestes campos, correndo o risco de ferir o princípio da sua autonomia frente às religiões, já que assim estaria assumindo uma opinião que toca a um tema fora da sua competência. Enfim, não seria um posicionamento ideológico por parte de quem não deve tomar partido frente aos diversos segmentos presentes na cultura de um país?

4º) A tentativa de argumentar a partir da inexistência do encéfalo possivelmente traz em si mesmo o gérmen da sua falácia. Digo isso porque me parece que se entende mal os motivos que validam este critério para o atestado de morte clínica de um indivíduo com cérebro desenvolvido. Ora, a aplicação de um critério a determinada situação deve ser feita perante o conhecimento da validade deste, e não meramente pela repetição simplória de silogismos numa outra, senão corremos o risco de discutirmos não idéias, mas apenas palavras. Pois se simplesmente dissermos aquilo que se tem repetido na imprensa – “se morte é falência encefálica, então o embrião sem encéfalo não pode ser considerado ser humano” – estaremos apenas repetindo o raciocínio, sem verificar se ele se encaixa, muito menos sem averiguar os motivos pelos quais ele existe para o caso de morte encefálica como é aplicado para os critérios clínicos na prática médica, situação em que parece ser consenso a sua validade.

O parecer italiano

Neste sentido, vale ressaltar o parecer do Conselho Nacional de Bioética da Itália acerca das questões bioéticas em torno da anencefalia, condição que poderia ser comparada de algum modo ao caso presente [5]. Diz o documento “Il neonato anencefalico e la donazione di organi” de 1996: “Não teria sentido portanto, falar de ‘morte cerebral’ mas dever-se-ia falar de ‘ausência cerebral’. Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado.” O documento impressiona pela defesa contundente que faz em favor daqueles bebês com esta malformação; eis alguns trechos, nos quais transparece a honestidade com que escolheu seus princípios e o sincero esforço para não se tomar decisões eticamente precipitadas:

* “Antes de mais nada vimos que a mal formação não é um fenômeno definido, mas um "continuum" de gravidade para o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de diagnóstico e possibilidade de erro.”
* “No caso do recém-nascido anencefálico a demonstração da morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal. (...) Tal hipótese criaria uma espécie de sub-categoria constituída pelos anencefálicos, para os quais ficariam válidos critérios parcialmente diferentes daqueles requeridos para todos os outros casos.”
* Frente a uma proposta que pretendia resolver as dificuldades legislativas classificando à parte os sujeitos anencéfalos e dizendo que “um indivíduo nestas condições incapaz de pensamento e de sensibilidade não tem interesse algum a defender e portanto não é titular de direitos e não precisa das tutelas aplicadas a outro sujeito”, o Comitê não se embaraça e é firme em seu parecer: “Tal posição se presta a numerosas críticas, seja de um ponto de vista médico como do ponto de vista moral. Ela é oriunda de um evidente intuito utilitarista.”.

Exemplo a seguir

Tomemos como modelo esta atitude do governo italiano de tratar com tanto cuidado e critério mesmo estes bebês que provavelmente terão sua vida abreviada pela doença (grifos meus):

* “nem parece importante a duração da vida a ser sacrificada como se uma vida breve fosse mais sacrificável para vantagem de outrem com expectativa de vida mais longa”
* “Numa perspectiva que considera a pessoa humana como tal (...), parece proponível somente a determinação de tornar disponível para a doação de órgãos somente o corpo daqueles sujeitos dos quais tenha sido verificada com certeza, a morte.”
* “A objeção de fundo, todavia, é que esses sujeitos são utilizados sem que para eles advenha um bem, aliás, com possível prejuízo, tendo como finalidade um benefício para outrem. Eles não têm condição de expressar um consentimento de alguma maneira e sua condição não é diferente daquela de muitos outros doentes em graves condições.”

E ressalto um último trecho, que parece ainda mais aplicável à questão do uso de embriões para a pesquisa: “A definição da morte não pode ser qualquer coisa que nós queremos que seja, mas existe independentemente das nossas finalidades. A morte não pode ser definida em sentido utilitarista de maneira a tornar máximo o bem que dela poderia eventualmente derivar, em prol de outras pessoas”. Deveríamos aplicar um tratamento semelhante aos nossos embriões, que são saudáveis e que se forem tratados com a dignidade que merecem poderão ter vida longa.

Motivos técnicos x motivos ideológicos

Retomemos a análise teórica do argumento. Qual é, então, o motivo pelo qual podemos dizer que o ser humano pode ser considerado morto quando seu encéfalo morre? Se alguém respondesse que é porque “o ser humano é o seu cérebro” estaria dentro das razões ideológicas mencionadas no terceiro argumento, as quais não podem ser aceitas sem uma discussão profunda, que não cabe neste momento. Portanto, não é esta a razão do uso de critério de morte encefálica por parte do Estado e da Medicina, embora muitos possam usar esta justificativa em foro íntimo. O que me parece é que o critério de morte encefálica para a Medicina é válido pelo seguinte motivo, que independe de ideologias: com o funcionamento encefálico extinto permanentemente, aquele organismo humano não mais pode se sustentar de forma autônoma. Embora seria preciso um estudo maior para verificar os motivos pelos quais este critério foi validado, esta é uma explicação que parece bastante razoável e que dá respaldo suficiente ao critério de morte encefálica. De fato, com o avanço dos recursos em terapia intensiva, aquele indivíduo poderia ser mantido vivo artificialmente, mas não se manteria independente por ter danificado as estruturas de seu tronco encefálico, as quais são necessárias para a manutenção autônoma de funções vitais, como a respiração. Configura-se, neste caso, uma situação orgânica irreversível, a morte encefálica.

Duas correntes

É necessário, para a compreensão deste argumento, que se note que não foi preciso entrar no mérito de refutar que o ser humano não é o seu cérebro, como dizem algumas correntes materialistas. Assim, configura-se um estado da questão em que ambas as correntes coexistem com a mesma conduta prática, embora com justificativas teóricas distintas – uma diz que o ser humano possui sim aspectos imateriais, sendo o cérebro apenas um veículo para a comunicação destes com os aspectos materiais, e a outra, que diz que os achados científicos do funcionamento cerebral são elas próprias o que chamamos de aspectos imateriais do homem. No entanto, na presente questão do “critério de vida”, a relevância desta distinção teórica ressurge como fator decisivo: se o ser humano fosse o seu cérebro como dizem os materialistas, estes argumentariam que o embrião sem cérebro ainda não é um ser humano (contrariando assim todo ensino de Embriologia presente que qualquer livro atual desta disciplina); se, diversamente, o ser humano não se resumir a este órgão, o embrião ainda sem cérebro já pode ser chamado ser humano – um ser humano numa etapa de seu desenvolvimento, o que é bem mais razoável. Como o Estado não deve ter opinião em matérias ideológicas, então se faz claro que as autoridades não devem entrar neste debate, devendo obrigatoriamente ser a versão válida para legitimar o critério da morte encefálica para fins clínicos, portanto, aquela mencionada anteriormente: “com o funcionamento encefálico extinto permanentemente, aquele organismo humano não mais pode se sustentar de forma autônoma”.

Um ser autônomo

Como complemento didático a esta explicação, eis o que diz o Comitê de Bioética Italiano frente a uma sugestão levantada que propunha mudar o critério de morte encefálica (que necessita de comprometimento irreversível do tronco encefálico, mantenedor das funções vitais mais básicas) para passar a considerar apenas a morte cortical como necessária para o diagnóstico de morte clínica, sustenta que “‘não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical) porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as capacidades de regulação (central) homeostáticas do organismo e a capacidade de realizar de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma’. Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de uma integração superior, o sujeito é considerado falecido.” Esta explicação do órgão italiano parece propor que o critério de morte encefálica como divisor de águas para o diagnóstico de morte na prática clínica se justifica porque ele confirmaa capacidade de um organismo se controlar autonomamente para integrar suas funções vitais como explicação.

O real motivo

Voltando o raciocínio para o embrião, agora munido da real justificativa que valida o critério de morte encefálica, podemos demonstrar a tese de que este argumento não desclassifica o embrião, e sim, ao contrário, o coloca dentro do entendimento de pessoa humana. Digo isso pelo seguinte: se a morte encefálica é um bom critério clínico porque com ela o indivíduo não mais consegue se sustentar de forma autônoma (já que antes precisava de seu cérebro para isso), no caso do embrião sem cérebro este não é um critério válido porque mesmo sem o cérebro o embrião consegue sim sustentar seu organismo de forma autônoma – com os recursos orgânicos que possui para atender as demandas biológicas da respectiva etapa de vida em que está, isto é, dispondo ou não de um cérebro – , precisando para isso apenas de um meio favorável (como o necessita qualquer ser humano em qualquer etapa de sua vida). E pudemos entender a questão desde modo porque antes demonstramos que o que valida o critério de morte encefálica não é a presença ou a ausência de um órgão – o cérebro – , mas sim a capacidade de aquele organismo se sustentar de forma independente e organizar suas funções de forma integrada. Para este objetivo, vemos claramente que no indivíduo que já possui um cérebro, a presença deste órgão é a condição para que esta capacidade exista, enquanto que para o embrião, a presença deste órgão não é a condição para que esta capacidade exista. Assim, compreendendo melhor a questão da morte encefálica, esta passa a ser um argumento a favor do embrião, e não contra ele como querem alguns.

CONCLUINDO:

Penso que esta explanação tenha preenchido as lacunas que me percebo no entendimento desta questão, que tantas vezes me soa como mal-formulada. Não vejo outros aspectos que possam tornar a comparação entre o embrião e a morte encefálica um raciocínio legítimo para afirmar que os embriões humanos não são humanos. Como demonstrado, ela não encontra respaldo em definições técnicas ou científicas, nem é formalmente correta do ponto de vista lógico, além de sofrer influência de ideologias pessoais.

Henrique Cal.


NOTAS E REFERÊNCIAS:

1- Algumas autoridades que respaldam a definição de embrião como ser humano:

Do livro “Embriologia Clínica” (Moore e Persaud, 7ªed.2004, Elsevier), um dos mais referenciados livros desta disciplina, usado por muitos estudantes de medicina ao redor do mundo (grifos meus): “Embrião (do grego ‘embryon’) é o ser humano em desenvolvimento durante os estágios iniciais.” (p.3); “Esta célula totipotente e altamente especializada marca o início de cada um de nós como indivíduo único” (p.18); e sobre o zigoto diz “Esta célula resulta da união do ovócito ao espermatozóide durante a fertilização. Um zigoto é o início de um novo ser humano (ou seja, um embrião)” (p.2); “Embora seja costume dividir-se o desenvolvimento humano em períodos pré-natal (antes do nascimento) e pós-natal (após o nascimento), o nascimento é meramente um evento dramático durante o desenvolvimento, resultante de uma mudança de ambiente.”; “O desenvolvimento humano é um processo contínuo que se inicia quando um óvulo de uma fêmea é fertilizado por um espermatozóide de um macho. (...) Embora a maior parte das mudanças no desenvolvimento se realize durante os períodos embrionários e fetais, ocorrem mudanças importantes nos períodos posteriores do desenvolvimento: infância, adolescência e idade adulta. O desenvolvimento não termina ao nascimento.” Ou seja, em ser embrião significa estar numa etapa de desenvolvimento humano. E continua: “O embrião inicia seu desenvolvimento imediatamente após a fertilização do ovócito”.

Prof. Jérôme Lejeune, geneticista, descobridor da síndrome de Down: "No princípio do ser há uma mensagem, essa mensagem contém a vida e essa mensagem é a vida. E se essa mensagem é uma mensagem humana, essa vida é uma vida humana." (J. Lejeune, Discurso de recepción como Doctor honoris causa por la Universidad de Navarra - disponível em < detail="n10913065"> )

Dra. Alice Teixeira Ferreira, médica, livre-docente de Biofísica e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Bioética da UNIFESP: “O zigoto (unicelular) já é um ser humano, já possui em seu código genético todas as informações sobre o futuro ser (...) ‘Não se trata, portanto, de um dogma religioso, mas da aceitação de um fato cientificamente comprovado (...) O ser humano, desde o ovo até o adulto, passa por diversas fases do desenvolvimento (ontogenia), mas em todas elas trata-se do mesmo indivíduo que, continuamente, se auto-constrói e se auto-organiza.’” (disponível em )

Pedro Juan Viladrich, fundador do Instituto de Ciências para a Família: “A rigor, um zigoto é tão ser humano como um velho, porque é ele o mesmo ao longo das suas diversas fases de crescimento: fase embrionária, fetal, infantil, púbere, juvenil, adulta e idosa. O desenvolvimento de um humano é o desenvolvimento do zigoto, de tal maneira que se suprime o zigoto, se suprime as fases sucessivas para aquele humano”. Quer dizer, referências de fase de crescimento, como jovem ou adulto não questionam a existência do ser. Podemos afirmar sem inseguranças que o zigoto e o ser adulto estão ligados invariavelmente pela mesma vida. Como o já citado estudioso diz, zigoto e idoso são uma ‘mesmidade’ única e irrepetível” (Viladrich, Pedro-Juan. O Aborto e a sociedade Permissiva. Ed. Quadrante; São Paulo, 1995. 100p.)

2- Disponíveis em < lgnoticia="25768"> e < idconteudo="69703&caixaBusca="> .

3- Num trecho do documento “Il neonato anencefalico e la donazione di organi” (Comitê Nacional de Bioética Italiano - 21/6/1996), há uma importante referência sobre esta impossibilidade de se determinar as funções cerebrais superiores no caso do anencéfalo – que se encaixam perfeitamente também no caso do embrião saudável em questão. Tais autoridades consideram até “admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencefálico, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o anencefálico enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimentos.” (disponível em <> e < op="pagina&chaveid=">)

4- “Seguindo a linha de raciocínio dos ministros do Supremo: se o embrião não tem vida, então a vida não é iniciada na junção do espermatozóide com o óvulo e na conseqüente formação do embrião humano. A pergunta que salta aos olhos é a seguinte: quando começa a vida, então? Vamos supor que os ministros do STF estejam corretos (o que felizmente não é verdade), e vamos embarcar nesta “aventura” conceitual: a definição do início da vida, tendo-se descartado o momento da junção espermatozóide-óvulo. Antes deste misterioso ponto “criador de vida”, seria lícito destruir o que não passaria de um “amontoado” de células. Após este ponto, já existiria vida, e então seria ilícito fazer algo contra este (já) ser humano. Vamos lá, então...

Seria no momento do parto o marco do início da vida? A resposta é não. Inúmeras pesquisas, imagens de ultra-som, medições e exames médicos atestam que o feto, antes do nascimento, tem todas as funções de um ser humano normal; ele vive, pensa e sente. Então em que ponto exatamente do desenvolvimento do feto se inicia a vida?

Dizem alguns que o marco do início da vida é a formação do sistema nervoso, pois com ele já é possível que o feto pense e sinta. Mas em que ponto exatamente da formação do sistema nervoso? Entre o momento em que uma célula embrionária se diferencia no primeiro neurônio até o ponto em que o complexo sistema nervoso do ser humano já está formado, exatamente quando se pode dizer que houve a ‘faísca’ inicial que desencadeou a vida? E, mesmo depois do parto, não foi comprovado já que nossos neurônios estão em constante mudança de configuração?

Pode-se chegar ainda a outras conclusões ainda mais abrangentes do que seja a vida. Para o teórico russo Vygotsky, o ser humano só se constitui enquanto ser social. Sua subjetividade só é possível em sociedade. Então, poder-se-ia dizer que só há ser humano propriamente dito quando este se insere no social. Ao contrário, não passaria de um animal. Portanto, um bebê não seria ainda humano, enquanto não entrasse no círculo social, cuja primeira figuração é a mãe. Não teve contato ainda com a sociedade? Sinto muito, você não é um ser humano... Aqui se justificaria não só a destruição de embriões, mas também a morte de qualquer criança, visto que ainda não têm desenvolvido totalmente sua subjetividade, sua consciência de si.

Quem lê estas conjecturas já deve ter percebido que os ministros do STF estão prestes a nos condenar a uma tarefa impossível, ou no mínimo capaz de suscitar controvérsias e teorias errôneas por séculos. Vê-se que tal “aventura” conceitual não levará a nenhuma conclusão definitiva, a não ser que se retorne ao momento da fecundação.”

(PINHEIRO, Daniel. Apostolado Veritatis Splendor: REFLEXÕES SOBRE A VIDA DO EMBRIÃO. Disponível em http://www.veritatis.com.br/article/4902. Desde 15/3/2008.)

5- Destaco alguns trechos do documento “Il neonato anencefalico e la donazione di organi”, do Comitê Nacional de Bioética Italiano (21/6/1996):

No caso do recém-nascido anencefálico a demonstração da morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal em sentido geral e também à própria condição de malformação do sujeito. As dificuldades nascem, geralmente, da verificação da morte cerebral na infância e na primeira semana de vida, porque, nesta idade, os conhecimentos da fisiologia do SNC são ainda incompletos, em particular no caso da malformação com anencefalia. (Mesmo o EEG, a constatação de fluxo cerebral e o próprio exame clínico são ditos de baixa confiabilidade para a avaliação da viabilidade do bebê anencéfalo.) A ausência de respiração espontânea poderia ser elemento suficiente para avaliar, no neonato anencefálico a morte do tronco cerebral. Com relação à técnica necessária para verificar a ausência da respiração espontânea, não existe ainda acordo entre os estudiosos. Tal hipótese criaria uma espécie de sub-categoria constituída pelos anencefálicos, para os quais ficariam válidos critérios parcialmente diferentes daqueles requeridos para todos os outros casos.

Um forte debate está surgindo sobre as potencialidades do encéfalo em idade neonatal. Uma grande capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas graves, é reconhecida nos primeiros dias de vida, nos quais particularmente ativos e válidos parecem os fenômenos de neuroplasticidade.

Não teria sentido portanto, falar de "morte cerebral" mas dever-se-ia falar de " ausência cerebral". Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado. O anencefálico não é, portanto, um sujeito "brain dead" mas um caso particular de morte cerebral denominado "brain absence". Tal posição se presta a numerosas críticas, seja do ponto de vista médico como do ponto de vista moral. Ela é oriunda de um evidente intuito utilitarista. Antes de mais nada, vimos que a mal formação não é um fenômeno definido, mas um " continuum" de gravidade para o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de diagnóstico e possibilidade de erro, muito embora a possibilidade de erro não seja de per si um elemento suficiente para proibir uma determinada prática médica.

Frente à sugestão de se mudar o critério de morte encefálica (isto é, do tronco encefálico) para a morte cortical meramente, Comitê Nacional para a Bioética já expressou o próprio parecer, sustentando que "não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical) porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as capacidades de regulação (central) homeoestáticas do organismo e a capacidade de realizar de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma ". Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de uma integração superior, o sujeito é considerado falecido.

A definição da morte não pode ser qualquer coisa que nós queremos que seja, mas existe independentemente das nossas finalidades. A morte não pode ser definida em sentido utilitarista de maneira a tornar máximo o bem que dela poderia eventualmente derivar, em prol de outras pessoas. Nem parece importante a duração da vida a ser sacrificada como se uma vida breve fosse mais sacrificável para vantagem de outrem com expectativa de vida mais longa; com relação a isto, existem pessoas que observaram que se os sujeitos anencefálicos não vivessem tão pouco hoje não estariam no centro deste debate. Numa perspectiva que considera a pessoa humana como tal, prescindindo, portanto, de seu estado de saúde e de desenvolvimento, como valor central de uma ética para as ciências biológicas, parece proponível somente a determinação de tornar disponível para a doação de órgãos somente o corpo daqueles sujeitos dos quais tenha sido verificada com certeza, a morte.