Maria Garcia
Quando ouvi o E. Ministro Carlos Ayres Britto aludir à falta de cérebro, no embrião, para concluir pelo seu uso em pesquisas; quando a E. Ministra Ellen Gracie Northfleet referiu-se à falta de nidação como elemento de convicção, no mesmo sentido e, por fim, quando o E. Ministro Celso de Mello invocou o benefício de tantas pessoas — lembrei-me de todos os estudos que vimos procedendo na disciplina Biodireito Constitucional, na PUC/SP. O que define o ser humano não incide unicamente no cérebro ou no coração, ou em qualquer dos seus órgãos, senão no sistema de órgãos e funções, conexos e orientados para uma finalidade comum: viver uma vida. Assim, poder-se-ia perguntar: então, onde está o cérebro do embrião? Terá de ser-lhe colocado, em algum momento? E o coração? E a estrutura óssea? Onde estão para que possa tê-los? Tudo está... no próprio embrião, nele mesmo: durante o processo vital a que alude o jurista José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo) ninguém deverá ir colocando o que quer que seja: tudo está contido no óvulo fecundado ou no embrião. Basta deixar sucederem-se as fases do processo e ter-se-á tudo pronto, completo, segundo a ordem do tempo. É o que faz com que afirme o jurista italiano Franco Bartolomei (La dignitá umana come concetto e valore costituzionale): "L'uovo fecondato non è cosa, creatura inferiore ma, uomo, persona — tertium non datur. L'anticipazione della tutela della vita e della dignitá umana a questa primissima forma della vita é imposta dalla Costituzione". Viver uma vida... E o que é, "vida"? Na acepção comum, registra o Dicionário Aurélio: "é o conjunto de propriedades pelas quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou em matéria pura, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas, tais como: o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e outras. No sentido jurídico, o mesmo José Afonso da Silva esclarece: "Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput) é um processo vital que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte.' E ressalva: "Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida". Ou, em outras palavras, tudo que interfere nesse processo vital, contraria a Constituição que é expressa em determinar, no aludido art. 5º: "garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida". A quem se refere a expressão "garantindo-se"? À Constituição, ela mesma e com ela (e por causa dela) os Poderes Públicos, os cidadãos brasileiros e todas as pessoas no território nacional estão implicadas nessa garantia.
A pergunta seguinte é: o embrião é humano? Está vivo? Ambas as respostas serão, inequivocamente, afirmativas, senão a lei não disporia sobre eles. Se afirmativas, aos embriões humanos estende-se o direito à vida. É o que diz a Constituição.
No curso destas ponderações já vimos percebendo que o que foi manifestado, até agora, no Supremo Tribunal refere-se à natureza do processo (fase, nidação) e não à essência (humano, vivo). O filósofo Jürgen Habermas (O futuro da natureza humana; págs. 27, 98) refere momentos significativos da mesma questão: quando o presidente da República Federal Alemã advertiu, em discurso de 18/5/2001: "Quem começa a fazer da vida humana um instrumento e a distinguir entre o que é digno ou não de viver, perde o freio." Assim, o uso da balança do valor das vidas humanas (pré-pessoais/pessoais) fazendo pender para um dos lados ("o que é bom para nós", no dizer de Habermas) demonstra logo a falta de harmonização ("o que é bom para todos") dos valores sopesados, de nítido critério utilitarista ou instrumental; ainda mais considerando que uma das partes (embriões) não detém o poder da manifestação e da auto-defesa — situação intolerável para o direito, sequer o direito de viver e ser. Minha impressão é de que, até o século XX o homem voltou-se para a conquista do seu entorno, o que culminou com a liberação da energia nuclear, incontrolável; agora, volta-se para o domínio do corpo humano. Até onde poderá chegar? Cabe ao Direito estabelecer os limites da Ciência.
Estas reflexões trazem a lembrança do texto de Kafka n'O Processo; o homem diante da porta da lei (a Constituição é a Lei):
"Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se não pode entrar mais tarde. "É possível", diz o porteiro, "mas agora, não". E, no final: "O porteiro percebe que o homem já esta no fim e, para ainda ser ouvido, ele grita: "Ninguém mais do que Você tinha o direito de entrar aqui pois esta entrada estava destinada a Você; agora eu me retiro e fecho-a". Teremos entrada na Constituição?
Acima de tudo, todavia, é necessário ficar claro, conforme duas frases da Juíza Jutta Limbach, ex-Presidente da Suprema Corte Alemã que (1) "A Ciência do Direito não é competente para responder a questão sobre a partir de quando começa a vida humana" e (2) "As ciências naturais, em virtude do seu conhecimento, não estão em condições de responder a questão a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição". Cabe, apenas, cumprir a Constituição e esta garante a inviolabilidade desse direito, sem distinções, onde haja o bem jurídico vida.
MARIA GARCIA
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais(USP), Livre-Docente em Direito do Estado (PUC/SP), OAB – SP nº 10.218, Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) desde 1997; atualmente Professora Associada: Direito Constitucional (Graduação e Pós-Graduação) e Direito Educacional (Pós-Graduação).
Membro Certificado da UNAT (União Nacional de Analistas Transacionais).