quarta-feira, 28 de maio de 2008

Direito à vida ou mercado promissor?

29/ 02/ 2008 - CÉLULAS-TRONCO

Lenise Garcia

Há 52 anos aconteceu um evento singular: milhões de espermatozóides de meu pai penetraram no corpo de minha mãe. Não era a primeira vez, nem seria a última, mas naquele dia foi especial. Havia um óvulo à espera. Da união desse óvulo com o espermatozóide "vencedor da corrida", surgiu um zigoto: eu. Nove meses depois, nasci.

Se esse zigoto tivesse morrido - ou tivesse sido morto - eu não estaria aqui. A pergunta que se faz no julgamento da Adin 3501 não é um genérico "quando começa a vida". Que a vida é um continuum, sabemos desde que Pasteur demonstrou que não existe geração espontânea. A questão é saber quando se inicia cada indivíduo, quando viemos ao mundo você e eu. A resposta foi dada pela Biologia em 1775 com Spallanzani e sedimentada em 1827, com Ernst von Baer.

O livro de Embriologia Médica de Moore e Persaud (2004) assim diz: O desenvolvimento humano é um processo contínuo que se inicia quando um ovócito (óvulo) de uma fêmea é fertilizado por um espermatozóide de um macho...

Alguns colegas dizem que nós, cientistas que defendemos a aprovação da Adin, utilizamos argumentos religiosos. Por ironia, quem usa argumentos religiosos são eles. Eles citam Pio IX e Santo Tomás de Aquino, enquanto nós citamos Spallanzani, Ernst von Baer e toda a literatura científica atual. Faço-lhes, aliás, um cordial desafio: que indiquem, na literatura científica, um livro que diga que a ciência não sabe quando é o início do indivíduo humano, e que essa resposta deve ser buscada na religião, pois depende das crenças de cada um.

A Igreja Católica e outras pessoas com perspectiva religiosa querem a condenação do uso de embriões humanos em experimentação em decorrência lógica da defesa dos direitos humanos. Martin Luther King batalhava pela igualdade de direitos entre o negro e o branco, com motivação religiosa, mas sem defender um dogma ou um artigo de fé. Defendia um direito humano básico. Aliás, a cláusula pétrea da nossa Constituição que defende a igualdade de direitos entre negros e brancos é a mesma que defende essa igualdade entre adultos e embriões. Se desrespeitada, já não poderemos dizer que todos são iguais perante a lei, mas teremos que admitir, como os bichos de Orwell, que "uns são mais iguais que os outros".

Estando em questão direitos humanos, outros pontos cabem mal na discussão. O direito à liberdade não depende do eventual interesse econômico na mão-de-obra escrava. Por isso, sinto-me desconfortável quando, ao discutirmos o direito do embrião à vida, entram em jogo argumentos que tratam de royalties. A meu ver, eles apenas acentuam a necessidade de defendermos o respeito à vida humana em todas as circunstâncias.

Artigo publicado no site da Fapesp, em 20/02, com o título "Impulso mercadológico", traz as seguintes informações: "Para Paul Sanberg, da Universidade do Sul da Flórida, potencial econômico das pesquisas sobre terapias com células-tronco atrairá interesse das grandes indústrias e aproximará tecnologias das aplicações clínicas... A Califórnia, sozinha, investe US$ 3 bilhões por ano em pesquisas sobre terapias celulares e células-tronco. A idéia é que a produção dessas tecnologias se torne economicamente tão importante quanto a do Vale do Silício"

Destaque-se que ele está falando de aplicações de células-tronco de medula óssea e de sangue de cordão umbilical, com as quais ele tem mais de 25 patentes. É justamente o uso desse tipo de células-tronco, que não lesam direitos humanos, não provocam tumores e não têm problemas de rejeição que nós temos defendido. Diferentes laboratórios do Brasil têm também obtido excelentes resultados com o uso dessas células.

Atrevo-me agora a fazer algumas suposições. Suponhamos que a Adin seja rejeitada, e que seja portanto permitido o uso de embriões humanos tal como previsto na lei. Suponhamos que, ao contrário do que vem ocorrendo no modelo animal, as células-tronco embrionárias humanas mostrem-se adequadas à realização de tratamentos clínicos. Atenderão embriões "excedentes" congelados há mais de 3 anos e gratuitamente doados às necessidades mercadológicas? Ou estaremos abrindo as portas à formação de um mercado negro que desrespeitará alguns dos valores que nos são mais caros, ligados à procriação e à vida humana? Que controle se poderá ter sobre um mercado negro em que a "mercadoria" é literalmente invisível?


Camila Martins/UnB Agência

Lenise Aparecida Martins Garcia é professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília


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"Não quero repetir o óbvio, mas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí pra frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato". (Jerôme Lejeune, descobridor da síndrome de Down)
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