domingo, 31 de agosto de 2008

Os déspotas da capa preta

por Rodrigo Pedroso*

Apenas um único Ministro, dos onze que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF), ficou para assistir a primeira audiência pública do processo da ADPF 54, ação que reclama o direito de abortar as crianças anencéfalas, com suposto fundamento na Constituição Federal.

Por que os Ministros não ficaram para assistir a audiência? Simplesmente porque já têm definidos os seus votos. Essas audiências públicas não se dirigem aos Ministros, que já formaram opinião sobre o assunto, mas à mídia e, por meio dela, à opinião pública.

Essas audiências públicas são uma farsa para legitimar a usurpação, pelo Supremo Tribunal Federal, dos poderes constituinte e legislativo. O STF não julga questões de fato, apenas questões de direito. Não precisa ser um grande jurista, qualquer advogado de porta de cadeia sabe disso. Por isso não têm sentido a convocação de audiências públicas para discutir aspectos “religiosos”, “científicos”, “filosóficos” ou o raio que os parta.

O que o Supremo tem que decidir é se existe algum preceito fundamental na Constituição que autorize alguém a abortar uma criança com anencefalia. É óbvio que não tem. Por isso, a ADPF 54 já devia ter sido extinta há anos, por falta de amparo constitucional. As audiências públicas servem para legitimar a usurpação, por parte do Supremo Tribunal Federal, do poder constituinte reformador.

No caso da ADPF 54 ser julgada procedente, o STF vai alterar o sentido do texto constitucional e ainda vai dizer que o fez “com amplo respaldo democrático da sociedade civil, que foi ouvida em sucessivas audiências públicas”.

A imagem que certos integrantes do STF querem passar não é apenas a de intérpretes autorizados da Constituição, mas a de intérpretes da vontade popular e dos anseios da “sociedade civil organizada”, substituindo-se ao próprio Congresso Nacional como representantes do “povo soberano”, titular do poder constituinte. É a adesão formal e explícita à politização do Judiciário e ao ativismo judicial, com gravíssima violação da separação constitucional dos poderes.

Para entender o perigo isso representa para as instituições democráticas, basta lembrar de outro órgão do Estado que, no decorrer da história brasileira, reivindicou para si o status de falar e agir em nome do povo soberano. Em 1889, o golpe militar que depôs o Imperador foi justificado pela frase do General Benjamin Constant: “O Exército é o povo fardado”. Desde então, a república brasileira viveu sob a tutela das Forças Armadas, como poder moderador exercido de fato. O chamado “partido fardado”, em 1964, “se investiu no exercício do poder constituinte” e passou a baixar sucessivos atos institucionais. O preâmbulo do Ato Institucional n. 1 bem que poderia ser utilizado pelo Ministro Marco Aurélio, para a redação de seu voto:

“(…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe neste Ato Institucional, resultante do exercício do poder constituinte, inerente a tôdas as revoluções, a sua legitimação.”

Será que viveremos agora sob a tutela dos “homens da capa preta”, os quais não receberam mandato popular? “A pior ditadura que pode existir é o despotismo do Judiciário. Contra ele, não há a quem recorrer” (Rui Barbosa).

***

O jurista Rodrigo Pedroso é membro da Comissão de Defesa da República e Democracia - OAB/SP

Sem cérebro é essa imprensa tendenciosa

A pergunta feita pela enquete do Uol não poderia comprovar mais a tese de que as audiências marcadas para negociar a vida humana deficiente foram feitas senão para "armar o circo" da opinião-pública contra todos aqueles que defendem a vida humana: "Mulher deve ter direito a interromper gravidez de feto sem cérebro?"

É essa, em resumo nú e crú, a mensagem que a grande imprensa tem comunicado aos brasileiros: o bebê que sofre de anencefalia é um ser sem cérebro. E a "interrupção da gravidez" não seria um aborto, um assassinato cruel e vexatório de um ser humano em seu estado mais indefeso, mas uma simples receita de bolo que não deu certo. Duas mentiras em uma única frase.

Mas como pode ser sem cérebro se seu coração bate, seus órgãos funcionam, se desenvolve e cresce dentro do útero? Como pode ser sem cérebro se mantém preservado o tronco cerebral que comanda a respiração, o batimento cardíaco e tantos outros reflexos invonluntários? Como pode ser sem cérebro se a pequena Marcela viveu mais de um ano depois de nascer, se alimentando, crescendo, sorrindo, chorando?

Defensores do aborto, tenham pelo menos o mínimo de ética, de respeito as nossas inteligências e ganhem essa luta com honestidade, verdade e coerência de intenções. Enquetes como essas são um insulto, um golpe sujo que nem o maior sofista teria coragem de proferir. Sim, esses bebês morrem em geral pouco tempo depois do nascimento, mas para chegarem a morrer, é porque nasceram vivos, e como uma vida que pertencia somente a eles. Não a vocês.

sábado, 30 de agosto de 2008

Pelo fim da hipocrisia

Agosto 30, 2008 de Jorge Ferraz
http://januacoeli.wordpress.com/2008/08/30/pelo-fim-da-hipocrisia/

A VEJA entrevistou o Ministro Marco Aurélio Mello. A cretinice explícita alcançou patamares inauditos na entrevista, na qual o relator do processo que tenciona legalizar o assassinato eugênico de crianças deficientes destila o seu instinto assassino e o seu desprezo pelas questões éticas e morais mais elementares. Em situações normais, a entrevista deveria provocar horror e repulsa; hoje em dia, é bem capaz que ela seja aplaudida. Cito alguns trechos mais significativos e faço alguns comentários.

A propósito, o texto da matéria na edição impressa da revista é (diferente do que aparece na internet) “Pelo fim da hipocrisia”. Não poderia ser mais apropriado.

"Por que o senhor defende o aborto de anencéfalos?
Para mim é pacífico: não há a menor possibilidade de sobrevivência quando não se tem cérebro"

Há. Marcela de Jesus que o diga. E há diversos casos de crianças anencéfalas mundo afora que viveram após o parto. Entre os diversos graus de anencefalia existentes, temos exemplos (todos diagnosticados como “anencéfalos” nos exames pré-natais; todos cujos pais receberam a sugestão de “interromper a gravidez”) dos mais variados: um dia, três dias, uma semana, doze dias, e até dois anos.

Contrapondo, então, a fala do Marco Mello aos fatos, chega-se inelutavelmente à seguinte conclusão: há muita possibilidade de sobrevivência quando não se tem cérebro. Chega-se até à Magistratura e ganha-se uma cadeira no Supremo Tribunal Federal!

"Em 2004, o plenário do STF derrubou uma liminar concedida pelo senhor que autorizava a interrupção da gestação de anencéfalos. Por que o senhor decidiu trazer o assunto à tona novamente?
Tomei como base o resultado da recente votação na corte do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. (…) Desta vez, a votação será menos apertada do que foi no caso das células-tronco. Diria que teremos um 7 a 4 ou um 8 a 3. E, depois que o Supremo bater o martelo, não adiantará recorrer ao Santo Padre"

Aqui, o Ministro confessa que o primeiro passo do plano orquestrado foi a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias. O segundo passo é a aprovação do aborto para os anencéfalos. Os passos seguintes, ele dirá mais na frente. Saliento, outrossim, o desrespeito religioso do Ministro para com a figura do Santo Padre, junto com - de novo - a caracterização do problema como sendo uma questão religiosa, coisa que não é. A tática do Marco Mello é repetir o mesmo lenga-lenga ad nauseam até que a população absorva “por osmose” aquilo que ele não consegue demonstrar por via racional.

"O senhor acredita que a maior flexibilização do STF abre a possibilidade para a discussão do aborto em geral?
Sem dúvida. O debate atual é um passo importante para que nós, os ministros do Supremo, selecionemos elementos que, no futuro, possam respaldar o julgamento do aborto de forma mais ampla"

Eis o terceiro passo da tática maquiavélica do Ministro: a legalização do aborto em geral. Eis, agora, os próprios abortistas a confessar que a questão das células-tronco era o primeiro passo para a legalização do aborto. Um verdadeiro efeito dominó bastante previsível, e que foi denunciado, mas infelizmente encontrou ouvidos surdos e céticos. É necessário fincar as bandeiras nos limites devidos, é necessário impedir o trem de encarrilhar; porque, uma vez que a primeira derrota é sofrida, as outras vêm quase como por conseqüência natural. Quem não oferece resistência às pequenas coisas não vai poder oferecê-la às grandes.

"Para os que se opõem ao aborto, no entanto, a mulher não tem direito a essa liberdade. A Igreja Católica, por exemplo, argumenta que a vida deve sempre ser acolhida como um dom.
É preciso esclarecer que a vida pressupõe o parto. O Código Civil prevê o direito do nascituro, ou seja, daquele que nasceu respirando por esforço próprio"

Hein?!!! Cada vez mais o sr. Ministro dá provas de que é possível haver sobrevida longa sem cérebro. Em primeiro lugar, o Código Civil “põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Código Civil, art. 2º). Em segundo lugar - e muitíssimo mais aberrante -, nascituro é justamente o ser humano concebido mas ainda não nascido, i.e., o feto no ventre da mãe! Onde o sr. Ministro foi buscar a definição dele, só Deus sabe.

"Dessa forma, o debate se estende para outras áreas, talvez até mais pantanosas do que o aborto, como a eutanásia.
A eutanásia pressupõe uma irreversibilidade da vida. Mediante laudos médicos que comprovem o quadro, as decisões poderão ficar a cargo de outra pessoa. Afirmo isso com base no princípio da dignidade da pessoa humana. E não pode haver dignidade com uma vida vegetativa"

Quarto passo do plano do sr. Ministro: a Eutanásia. Trocando em miúdos, é a implantação da cultura da morte de maneira generalizada. E ainda há os que se recusam a ver.

"Como católico, o senhor não entra em conflito por suas convicções a respeito desses temas?
Nenhum. Não potencializo a religião a ponto de colocar em segundo plano a razão. (…) Nós, integrantes do Supremo, os guardiões maiores da Constituição, não podemos nos render à apatia, que é o mal do nosso século"

O Ministro Marco Mello diz ser católico. Claro, tão católico quanto as Abortistas pelo Direito de Matar. Haja cretinice. Os “guardiões maiores da Constituição” são exatamente os criminosos que a seqüestram, desprezam, mutilam, deformam. O povo brasileiro deveria fazer uma campanha: pela liberdade da Constituição, e pela aposentadoria compulsória dos Magistrados descerebrados. Afinal, já basta de tanta hipocrisia.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Temos o direito de interromper a gestação?

Artigo - Luís Paulo Sirvinskas

Folha de S. Paulo

Permitir a interrupção da gestação de feto anencéfalo é um precedente perigoso: abrirá as portas ao aborto em geral. Temos tal direito?

O CASO específico da menina Marcela de Jesus Galante Ferreira, que teve uma sobrevida superior à expectativa médica (um ano e oito meses), não deve servir como único fundamento contra a interrupção de gestação do feto anencéfalo. Há muitos outros.
A anencefalia é a falha do fechamento do tubo neural causada por problemas genéticos e ambientais no primeiro mês da concepção. A má-formação do cérebro não implica a má-formação dos outros órgãos. Há caso de gestante que resolveu ter o filho para, logo depois, doar os órgãos. Isso não significa, sob o ponto de vista científico, ausência de vida.
O amor que a gestante tem por seu filho é único, seja esse filho perfeito ou não. O amor de mãe não se desfaz pelo fato de o filho não possuir uma formação adequada. Ela não tem o direito de decidir sobre a vida e a morte de seu filho, pois ele não lhe pertence.
Ela deverá concebê-lo para o mundo, e não para si mesma.

A vida é protegida pela Constituição Federal (artigo 5º). Sabemos que todos os direitos têm caráter relativo.
Nada é absoluto. Tampouco a vida.
Admite-se, em caso de guerra, a pena de morte (artigo 5º, XLVII, a).

No entanto, a vida de um anencéfalo também deve ser protegida, assim como a de um embrião. Cada qual com suas peculiaridades. Trata-se de um direito inalienável. Permitir a interrupção dessa vida é praticar o crime de aborto (artigos 124 a 128 do Código Penal).
Aqueles que acreditam que essa vida, por ser inviável, não pode prosseguir, se respaldam no princípio da dignidade da pessoa humana. Caso se abra esse precedente, será também possível interromper a vida daquele que sofre um acidente e se torna paraplégico? Essa pessoa estaria confinada a viver numa cadeira de rodas o resto de sua vida, dependente de outra. Não haveria nenhuma perspectiva de melhora. Estamos falando de eutanásia ou ortotanásia.

E, a pretexto de querer ser solidário ou se compadecer com o "sofrimento alheio", deve-se concordar com a interrupção da vida daquele que, de qualquer maneira, iria falecer?
Qual é o real motivo dessa interrupção? Estamos dispensando o feto para proteger a saúde da mãe? Será que temos o direito de decidir o que seria melhor para o outro?
Podemos, como se vê, destruir a vida de um embrião a pretexto da melhoria de vida de pessoas que possuem alguma doença degenerativa?

Podemos, dessa forma, interromper a vida de um feto anencéfalo para evitar danos à gestante ou interromper a vida de um moribundo que esteja internado com morte cerebral?
A proteção da vida não pode ser analisada apenas sob o ponto de vista religioso, mas também científico.

Há vários trabalhos científicos, apresentados em congressos e seminários médicos, que demonstram que as seqüelas causadas à gestante após a interrupção da gestação do feto anencéfalo é maior do que se imagina.

Na qualidade de promotor de Justiça, deixei de dar parecer favorável em um caso semelhante por convicção pessoal. Não me sentiria à vontade para defender a vida em certas situações e, em outras, permitir sua interrupção. Todos têm direito à vida, por mais rudimentar que seja, independentemente da religião.

Apesar de o Brasil ser um Estado laico, ciência e religião caminham juntas. O Estado deve, sim, intervir para proteger a vida e não deixar nas mãos de alguém que não teria condições psicológicas, naquele momento, para decidir tão delicada questão, exceto se houver risco iminente de morte da gestante.

Às vezes, não é nem a própria gestante quem decide realizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo. Porém, após a prática de tal ato, a gestante poderia entrar em profunda depressão, o que poderia levá-la ao suicídio.

Diante disso, será que Deus não nos deu a inteligência para que possamos fazer bom uso dela? Será que podemos tirar a vida de alguém -qualquer que seja sua situação? Vida esta que teve a oportunidade de nascer e viver? E que teria cumprido seu destino, ainda que parcial?

Permitir a interrupção da gestação do feto anencéfalo com base na dignidade da pessoa humana é abrir um precedente perigoso. Esse precedente, assim como a decisão que permitiu a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapia, abrirá as portas para o aborto em qualquer hipótese. Será que temos esse direito?

LUÍS PAULO SIRVINSKAS , 52, mestre e doutor em direito pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), é promotor de Justiça em São Paulo.

http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=453310

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Estrelas-guia

( resposta ao artigo da revista Veja sobre Marcela)

Cláudio Fonteles, subprocurador geral da República

A jornalista Adriana Dias Lopes, na edição da revista Veja do dia 15 de agosto passado, a propósito da menina Marcela de Jesus Galante Ferreira, faz desfilar expressões como “a menina sem estrela” (título da matéria); “cruel anomalia congênita”; “jamais ter sentido o toque das mãos da mãe”; “resignação própria de católicos fervorosos”; “Marcela não viverá muito mais”; e conclusiva: “Casos como o de Marcela certamente seriam incluídos nos protocolos de eutanásia na Holanda, diz o pediatra alemão Roberto Wüsthof. Não faz sentido ser diferente. É como se ela fosse um computador sem processador”.

Aí está: “É como se fosse um computador, sem processador”.

Esta é a frase, matriz eloqüente de setores empresariais, políticos e midiáticos, que querem impor o stablishment mecanicista. O stablishment que reduz a vida humana a algo aferível, coletiva e funcionalmente: “não faz sentido ser diferente”. Todos nós devemos conformarmo-nos ao padrão ditado pela eficiência, que produz ganho quantificado.

Nessa sociedade, informatizada por tais pilares, o pobre, o deficiente, o velho não contam.

À observação de Cacilda, mãe de Marcela, a dizer: “Minha filha é muito carinhosa. As pessoas ficam tão encantadas com ela que não ligam para o formato de sua cabecinha”, a jornalista Adriana Dias Lopes sentencia, definitivamente: “As reações esporádicas de Marcela aos afagos da mãe, como um meio sorriso que esboça vez por outra, são resultados de reflexos involuntários que não precisam necessariamente passar pelo cérebro”.

A vida humana, única e irrepetível, não se mensura em economia de escala, não é linear, de modo que sejamos todos nós, mulheres e homens, embriões, fetos, crianças, velhos, vistos como no traçado imperturbável de uma linha reta.

A vida humana não é assim.

Complexa, surpreendente, imprevisível não permite que seja aprisionada na pura sistematização racionalista.

Complexa, surpreendente, imprevisível traça na história o marco de seu ineditismo.

“Foi para a liberdade, que eu vos fiz livres”, ou seja, temos todos em nós o chamado à transcendência – movimentar-se para o alto -, rompendo com os esquemas traçados pela mentalidade egocêntrica, hoje tão em voga.

Ontem, dia 19 de agosto, brasileiras e brasileiros, irmãs e irmãos das Américas, atletas todos do Parapan, encerraram uma semana de eloqüente demonstração no sentido de que a deficiência, no ser humano, não se constitui em óbice, porque viver é ultrapassar limites: “foi para a liberdade, que eu vos fiz livres”.

A Marcela, jornalista Adriana Dias Lopes, é mesmo uma “menina sem estrela”, porque ela, e todos os que são, sob as mais variadas justificativas, ou estão, mutilados, deformados são, todos, ela e eles, estrelas-guia para os que ainda conseguem admirar, conseguem comover-se, conseguem ser livres para a liberdade.

Brasília, 20 de agosto de 2007

Cláudio Lemos Fonteles

"Todo o tempo fui compelida a realizar o aborto"

(o relato de Janaína, uma mãe que resistiu heroicamente à pressão dos médicos para abortar seu filho Thalles, ancencéfalo)

Venho por meio deste relatar a minha experiência enquanto mãe de um filho anencéfalo. Sou estudante de Direito do 9º semestre da Universidade Católica de Brasília. Há três anos, em virtude de um namoro, engravidei e devido a circunstâncias afetivas acabei por ficar sozinha. À época tinha 19 anos.

Tive que enfrentar todas as questões familiares, a vergonha, enfim, todo o constrangimento de uma gravidez no fim da adolescência. Felizmente, não obstante todo o sofrimento que experimentaram, meus pais, por serem católicos, me acolheram.

Passaram-se três meses e, enfim, o pai da criança resolveu acompanhar-me numa ecografia: era o dia em que conheceríamos o sexo do bebê. Naquela oportunidade, a médica ecografista foi bastante cuidadosa, mas não havia como omitir a anomalia que sofria meu filho, ele era anencéfalo.

Obviamente tal notícia assustou-me e eu, a principio, não fui capaz de absorver a realidade, até porque nunca tinha ouvido falar em algo semelhante. Já naquele momento, a doutora trouxe a possibilidade do aborto, mesmo não se mostrando muito favorável.

No mesmo dia, à tarde, procuramos outro médico em um hospital particular de Brasília (Hospital da Unimed) e este me disse: "Menina, pra quê você quer uma coisa que não presta?"; "Se fosse minha paciente eu te levaria agora para a curetagem."

Não sabia o que era curetagem, quando me explicaram tratar-se, naquela situação, de um eufemismo para a palavra aborto.

Felizmente, pude contar com o acompanhamento de uma outra médica particular e, então, dei continuidade ao pré-natal.

Desde o primeiro dia, quando foi constatada a má-formação, a ecografista e também a minha ginecologista-obstetra, informaram-me acerca de uma equipe médica especialista nestes casos que atendia no HMIB – Hospital Materno-Infantil de Brasília. Na oportunidade, disseram-me que se tratava de uma equipe médica especialista em casos de gestação de alto risco, seja para mãe ou para o filho.

Alguns dos amigos da faculdade aos quais relatei a situação, me disseram que o Ministério Público concedia autorizações para mulheres que desejassem fazer o aborto, principalmente àquelas que recorressem a referida equipe médica do HMIB. Por isso, a princípio, resisti em marcar uma consulta naquele hospital. Contudo, visando as melhores condições para mim e para o meu filho, busquei um encaminhamento no posto de saúde do Núcleo Bandeirante, tendo em vista que se tratavam de especialistas e eu queria que, após o parto, o meu filho recebesse os cuidados necessários, caso viesse a sobreviver depois do corte do cordão umbilical.

Realmente, eu já estava decidida a não abortar o meu filho. Tal possibilidade somente passava na minha mente à força das palavras, muitas delas duras, que ouvia dos médicos, mas tal possibilidade não emanava do meu interior. Queria conviver com o Thalles o tempo que fosse possível, já estava no sétimo mês da gestação e não fosse o fato de que ele era anencéfalo, tudo mais corria na maior naturalidade. Sentia-me bem, não tive alterações fisiológicas, além daquelas naturais da gestação como, por exemplo, o aumento de nove quilos no meu peso.

Enfim, qual foi a minha surpresa ao constatar a realidade do atendimento naquela equipe de excelência, pois, todo o tempo fui compelida a realizar o aborto. Naquele hospital, eram marcadas uma vez na semana, consultas, com a referida equipe. Ficavam numa ante-sala, sem assentos suficientes, por volta de 12 mulheres e seus respectivos acompanhantes ou não, aguardando a consulta. Todas elas estavam grávidas de crianças com as mais diversas má-formações – das quais nunca tinha ouvido falar. Algumas, muito pobres, outras que já haviam tido filhos com aquelas deformidades anteriormente, conversavam entre si, enquanto eu as observava. Percebi que eu era a única que tinha um filho anencéfalo.

Enquanto aguardávamos, pude presenciar um momento que me chocou deveras. É que elas estavam conversando a respeito de uma mãe que tinha passado por ali, algumas semanas antes, e que naquele dia estava realizando a interrupção da gravidez. Pude presenciar aquela mãe sentada no corredor do hospital, chorando muito após o parto. Ela estava lá sozinha – porque não permitem acompanhantes no pós-parto de maiores – e sequer, conforme relatou e porque não permitiram, conseguiu ver o seu filho direito, o que lhe causou muito sofrimento.

Chegou a minha vez, e como relatei, os médicos, na pessoa do médico-chefe, me diziam que eu já deveria ter feito a chamada interrupção e que uma cesariana traria para mim riscos muito maiores que a interrupção, que eu não deveria mostrar o meu filho para ninguém após o parto e até mesmo que eu poderia ficar cheia de estrias etc. Tudo para que eu interrompesse a gravidez.

Realmente, se fosse necessário recorrer aquele hospital para dar continuidade à gestação, o meu sofrimento teria sido triplicado.

Enfim, graças a Deus, eu e o Thalles superamos todos os preconceitos e dificuldades. Amei-o com toda intensidade que conseguia. Cantei, rezei, brinquei, ou seja, fiz tudo o que uma mãe faz com o seu filho no ventre.

Ele nasceu às 13:15hs do dia 09.07.2002, foi registrado como cidadão brasileiro e faleceu às 11:25hs do dia 10.07.2002. Tive a oportunidade de segurá-lo no colo e de me despedir dele. Hoje trago uma linda e real lembrança, de uma gravidez, que teve algumas dificuldades intrínsecas à situação, mas que me trouxe muitos benefícios enquanto pessoa humana e me deu uma grande alegria: a de ser mãe. Sou mãe do Thalles, vivo ou morto, bonito ou feio, presente ou ausente. Sou mãe dele porque ele efetivamente existiu e foi gerado em mim, o tempo que ele permaneceu com a minha família e toda a multidão que ia vê-lo na incubadora, foi um grande lucro.

Antes da liberação do aborto, o que as mães de filhos anencéfalos necessitam é de esclarecimento, valendo ressaltar as incoerências que têm sido divulgadas, e apoio. A atitude do governo deve ser a da prevenção, com a distribuição de ácido fólico, com o combate ao uso de drogas, enfim, não vai ser por esse caminho, aparentemente mais fácil, que as mães terão a sua dificuldade sanada, mas no acolhimento e na solidariedade.

Brasília, 19 de agosto de 2004.
Janaina da Silva César

O ABORTO E A TEOLOGIA ACHADA NA SARJETA

http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

Abaixo, no post das 4h55, há a notícia de que Marco Aurélio de Mello, ministro do Supremo, promoveu a primeira audiência pública sobre o aborto de fetos anencéfalos. Já apanhei bastante, inclusive de fãs do blog, por causa da minha opinião a respeito. É do jogo. Tenho leitores altivos, donos do seu nariz. Nem sempre seguem "o mestre", como me chamam em tom irônico os adversários do blog - para me esculhambar, claro. Fosse eu outro, iria perscrutando as opiniões da maioria para, então, liderá-la. Sou quem sou. Se tiver de ficar sozinho, lá vou eu para o deserto. Mas, claro, há muitos que concordam comigo. E, desta feita, não vou nem entrar no mérito da questão.

Fiquei, com efeito, encantado com alguns representantes ditos "religiosos" na audiência pública. Dois, em particular, ofendem a inteligência, havendo uma, de pessoas favoráveis ou contrárias ao aborto de anencéfalos. No caso, falaram a favor.

Comecemos pelas tais "Católicas pelo Direito de Decidir". Estarem estas senhoras representadas numa audiência pública é um ofensa à lógica e à religião. Ofende a lógica porque elas são militantes pró-aborto sem qualquer locução adjetiva. As ditas católicas não são favoráveis ao aborto de anéncéfalos apenas. Não! Elas são favoráveis ao aborto, qualquer um. De fetos com cérebro também. Para elas, um miolinho a mais, um a menos, tanto faz. Que lógica explica o convite? Não falam em nome dos católicos. Falam em nome de sua entidade.

Mas ofendem também a religião. Como podem se dizer católicas se renegam um princípio básico da religião? Quem as reconhece nessa condição? A ser assim, vamos fundar o "Islamismo pelo Direito de Decidir". Ou o "Judaísmo pelo Direito de Decidir". Ou o "Hinduísmo pelo Direito de Decidir". Basta que a gente se diga pertencente a tal religião, e teremos, então, o status de uma dissidência. Mas "decidir" o quê? Ah, sei lá: no caso do hinduísmo, por exemplo, poderia ser "Pelo Direito de Decidir Consumir Carne de Vaca". E militaríamos pelo direito de comer carne de porco em todas elas...

Ora, falta a essas senhoras um mínimo, pequenino mesmo, senso de decoro. Por que não criam a sua ONG pró-aborto, tenha ela o nome que tiver, e não param de usurpar o nome do catolicismo para defender uma prática renegada por essa Igreja? Aliás, já passou da hora de a hierarquia católica brasileira declarar a excomunhão dessas senhoras - porque se auto-excomungaram. É um procedimento da religião que elas abraçaram. Ou sigam os preceitos ou caiam fora. Felizmente, existe o direito de decidir não ser católico.


Igreja Universal do Reino de Deus

Quanto a Igreja Universal do Reino de Deus, dizer o quê? Vejam o trecho que cita o pastor para dizer que a Bíblia admite o aborto: "Se o homem gerar cem filhos, e viver muitos anos, e os dias dos seus anos forem muitos, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é melhor do que ele".

Trata-se de uma referência estúpida, bucéfala, ignorante, rasteira ao Eclesiastes (6,3). É o que dá ouvir, na condição de "religião", uma teologia mais jovem do que o uísque que eu bebo. Afirmar que há, no trecho, endosso ao aborto é pura delinqüência teológica e bíblica. O aborto é empregado apenas como um extremo da fealdade. Não há endosso. É o exato oposto. E de onde o pastor tirou essa pérola de interpretação? Das iluminações do autoproclamado "bispo" Edir Macedo, dono da seita.

Reproduzo, abaixo, trecho de um post que escrevi sobre este senhor no dia 13 de outubro de 2007:
*
Há uma entrevista na Folha com Edir Macedo (...). Quem assina o texto é Daniel Castro, e quem responde pode ser uma "legião", já que foi feita por e-mail e intermediada pela cúpula, digamos assim, religiosa da seita. Há alguns dias, postei aqui um texto dizendo que o petismo é a Universal da política, e a Universal, o petismo da religião. Quem me dá razão é Macedo. Leiam uma pergunta e uma resposta:

FOLHA - Alguns políticos então da base da Igreja Universal, como o bispo Rodrigues, foram atingidos em cheio pelos escândalos do primeiro mandato de Lula. A corrupção não é um pecado imperdoável?
MACEDO - Jesus ensina que o único pecado imperdoável é a blasfêmia contra o Espírito Santo. Para os demais, há perdão se houver arrependimento.

É a "igreja" de que o PT precisa. Se Deus censura a safadeza, os petistas podem ficar tranqüilos: o "deus" de Macedo perdoa. A sua "teologia" é bastante elástica pra isso. Tão elástica, que ele encontra uma justificativa teológica para o aborto. Se havia desconfianças sobre a filiação da tal Universal ao cristianismo, não há mais. Leiam:

"Sou favorável à descriminalização do aborto por muitas razões. Porém, aí vão algumas das mais importantes:
1) Muitas mulheres têm perdido a vida em clínicas de fundo de quintal. Se o aborto fosse legalizado, elas não correriam risco de morte;
2) O que é menos doloroso: aborto ou ter crianças vivendo como camundongos nos lixões de nossas cidades, sem infância, sem saúde, sem escola, sem alimentação e sem qualquer perspectiva de um futuro melhor? E o que dizer das comissionadas pelos traficantes de drogas?
3) A quem interessa uma multidão de crianças sem pais, sem amor e sem ninguém?
4) O que os que são contra o aborto têm feito pelas crianças abandonadas?
5) Por que a resistência ao planejamento familiar? Acredito, sim, que o aborto diminuiria em muito a violência no Brasil, haja vista não haver uma política séria voltada para a criançada."

Trata-se de uma formidável coleção de asneiras, talvez ditadas pelo diabo. Se Macedo acredita até mesmo na remissão do corrupto, por que não na das crianças que vivem nos lixões? Se opta pelo aborto como saída menos dolorosa, por que não por outras práticas igualmente homicidas que trariam mais controle social? A Igreja Católica é contra o aborto e conta com milhares de entidades espalhadas mundo afora para cuidar de crianças abandonadas. E o que Macedo tem feito? Se o aborto diminuiria em muito a violência no Brasil, há de se supor que diminuiria também em muito o número de seus fiéis, não é mesmo?, já que é evidente que boa parte da força de sua "igreja" se concentra entre os miseráveis. Existe também lixão religioso no mundo.

Santo Edir Macedo! Seu "deus" perdoa corruptos, mas não perdoa os fetos!

Se for para ouvir esse tipo de formação "teológica", o Supremo poderia economizar tempo e dinheiro. Já sabemos qual será a decisão. O resto é só carnificina - também teórica.

Por Reinaldo Azevedo | 04:59 |

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Alguns esclarecimentos sobre os fetos anencéfalos

Dalton Luiz de Paula Ramos

A discussão que acontece hoje no Brasil a respeito da decisão do ministro do STF sobre os fetos anencéfalos suscitou amplo debate. A partir das indagações que me chegaram pela Internet, apresento algumas breves reflexões, sem pretender esgotar tão complexa questão, basicamente sobre dois questionamentos que me foram apresentados:

1º questionamento:

Os fetos com diagnóstico de anencefalia já não estão mortos?

Não, não estão mortos!

Os quadros de anencefalia podem variar em grau. Alguns apresentam maior comprometimento de estruturas neurológicas, outros menos. Não se deve pensar que essa malformação tenha uma única característica ou seja rigorosamente definível.

Entre os recém-nascidos anencéfalos nascem vivos 2 de cada 3 casos. Desses nascidos vivos cerca de 98% morrem ainda na primeira semana. Cerca de 1% sobrevive até 3 meses; existem relatos na literatura científica de crianças que sobreviveram até um ano sem o auxilio de respiração artificial.

O próprio diagnóstico da “morte cerebral” – método empregado em outras circunstâncias para o diagnóstico da morte para, por exemplo, autorizar a remoção de órgãos para transplantes – apresenta grandes dificuldades técnicas, devido ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal.

O Comitê Nacional de Bioética italiano, manifestando-se a respeito da avaliação das capacidades do recém-nascido anencéfalo, admite que “a neuroplastividade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencefálico, pelo menos nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento de que o anencéfalo, enquanto privado dos hemisférios cerebrais, não está em condições, por definição, de ter consciência e experimentar sofrimentos”.

2º questionamento:

E o sofrimento dos pais? Não é mais lógico interromper essa gestação, uma vez que mesmo que a gestação chegue ao final a sobrevida dessas crianças será breve? Dessa forma não se abreviaria o sofrimento dos pais?

O diagnóstico, por exames sorológicos e ultra-sonografia, muitas vezes é feito antes da vigésima semana de gestação. Ainda segundo o Comitê italiano, apesar de uma expectativa de vida reduzida não é sempre possível, no caso dos anencéfalos, definir a iminência do óbito, e a duração da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos intensivos.

Trata-se de uma situação que se reveste de grande dramaticidade, tal qual as de tantas outras situações clínicas, como, por exemplo, a dos chamados “pacientes terminais”, onde a probabilidade de morte é grande.

Essa dramaticidade exige de todos uma atenção especial para com os pais, que necessitam de amparo não só no aspecto psicológico, mas também espiritual. É uma situação que tem de ser enfrentada, como tantas outras igualmente dramáticas. Temos de ser realistas e admitir que é uma situação complexa que vai exigir um esforço de caridade não só das pessoas mais diretamente envolvidas, como os pais, mas também de todos os que estão em torno dessas pessoas, da comunidade que as cerca.

Enfrentar a dramaticidade dessa questão é que é, para muitos, difícil e trabalhoso. Aqueles pais infortunados, vítimas da situação, muitas vezes se verão sozinhos, debilitados pelo sofrimento, pois o sofrimento vivido na solidão debilita a pessoa e ela, assim, de boa índole, pode se deixar levar por supostas soluções imediatas, sem se dar conta das suas implicações.

Nesse sentido, algumas pessoas propõem a “interrupção da gravidez”, jogo semântico que oculta o que realmente se está propondo: o aborto provocado.

Assim, na busca de uma solução para o sofrimento, para a dramaticidade inerente à situação tratada, o aborto apresenta-se como uma “solução” trágica. Não se pode tentar resolver o que é dramático com o trágico! No dramático existe a possibilidade de uma positividade, no trágico só a destruição.

E por que é que o aborto é uma tragédia? O que é e como é feito o aborto? Quais são as suas conseqüências para os envolvidos? Sem se enfrentar essas questões, não se está enfrentando a situação de forma séria e honesta.

Muito sinteticamente, essa “interrupção da gravidez”, esse aborto, se realiza de duas formas.

Numa delas se mata o feto ainda dentro do útero da mãe, por meio da injeção de substâncias químicas diretamente no feto. Pessoalmente, já ouvi relatos de médicos que usam essa técnica. Injetam uma droga (usualmente cloreto de potássio) e então ocorre a parada do coração do feto (morte). O cloreto de potássio é a droga utilizada nas execuções de criminosos condenados à morte nos EUA; causa tanto sofrimento que, nessas execuções de criminosos condenados, injetam-se primeiro fortíssimos analgésicos.

A primeira vítima é a criança; a segunda vítima, a mãe, que, agora, deverá se submeter a “curetagem”, às vezes tendo de aguardar horas para que se realize esse segundo procedimento, pois na clínica em que se fez a injeção letal não se faz a curetagem, realizada em hospitais públicos ou pronto-socorro.

Numa segunda forma de promover o aborto, o processo do parto é provocado, por meios mecânicos ou químicos. E aí a criança nasce: está viva. Devido à prematuridade do parto em relação à idade gestacional ou devido a limitações orgânicas decorrentes de anomalias (como pode ser o caso de anencéfalos), essa criança precisa, como qualquer outra, de suporte para continuar viva: precisa receber nutrientes, ser acomodada num ambiente adequado, etc. Resta, então, que morra sozinha, o que pode acontecer em alguns minutos ou em algumas horas, dias...

Num e noutro caso, não podemos esquecer também das seqüelas a médio e longo prazo. Muitos são, nesse sentido, os testemunhos dolorosos de mães, pais, avôs e avós, profissionais da saúde. Só que esses testemunhos não chegam à mídia, na qual só se divulgam declarações de pessoas “independentes” e “resolvidas na vida”.

Não podemos ser ingênuos. Alguns investem em criar uma mentalidade que torne aceitáveis, naturais ou normais tais situações de aborto. E a questão dos fetos anencéfalos é apenas o trampolim para tanto.

O aborto é isso. Não existe aborto limpo. O aborto é, na sua essência e nas suas conseqüências, hediondo, pois só destrói.

Insisto: Não se pode tentar resolver o que é dramático com o trágico!

O que é dramático, numa perspectiva cristã onde se retoma o sentido da vida humana e da própria maternidade/paternidade, provoca, potencialmente, a possibilidade de que o belo e o próprio sentido do sofrimento possam emergir. Muitos são os testemunhos, não só entre pais de anencéfalos mas principalmente entre tantos que conviveram com pacientes desenganados pela medicina ou com filhos com deficiências, de que é possível viver uma positividade mesmo dentro da situação de sofrimento. Tudo isso, é claro, exige um caminho de vida, na comunidade da Igreja, e a Graça. Uma companhia de verdadeiros amigos com quem, muitas vezes com muita fadiga, compartilha-se o sofrimento e se alcança um sentido para a realidade, o sentido de positividade de cada acontecimento.

Em recente troca de correspondência a esse respeito com meu prezado mestre, o médico Daniel Serrão, professor catedrático da Universidade do Porto (Portugal) e também Membro da Pontifícia Academia para a Vida, destacávamos a ênfase que devemos dar no apoio aos pais na difícil situação de terem um diagnóstico de anencefalia, para que agüentem o desgosto e não descarreguem sobre o infeliz e inocente filho a frustração de não terem o sonhado filho perfeito. Segundo Serrão, “na minha experiência, quando há o acompanhamento adequado, a mãe, principalmente, vai desenvolver durante a gravidez e depois do parto sentimentos de profundo afeto por aquele filho infeliz e, depois da sua morte, fará um luto mais sereno. [...] Abortar é a pior das soluções, mas o acompanhamento humano e psicológico é absolutamente necessário para que se gere a aceitação do sofrimento”.


* Dalton Luiz de Paula Ramos é professor associado de Bioética da Universidade de São Paulo, membro correspondente da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, membro do Núcleo Técnico Interdisciplinar de Bioética da UNIFESP/EPM e coordenador do Projeto Ciências da Vida do Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP. (http://www.pucsp.br/fecultura/0408ane1.htm)

Aos Ministros do STF: o que é realmente Anencefalia? E o que está envolvido em seu julgamento?

www.biodireito- medicina. com.br

Referência: Resolução 1752/04 do CFM, que autoriza a retirada de órgãos de "anencéfalos" para transplantes diante da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que postula a autorização para abortamento de anencéfalos.
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Editoria de Biodireito_Medicina
Responsável Celso Galli Coimbra

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O STF está prestes a decidir a "interrupção da gravidez" de fetos "anencéfalos" -- expressão que não corresponde aos fatos neurológicos. Pelas repetidas abordagens do assunto na mídia e por profissionais do Direito, está claro que não existe uma efetiva constatação neurológica do que é erroneamente chamado de feto "anencéfalo".

Desde logo pontuamos o que será examinado:

1. "Anencefalia" não corresponde à morte encefálica.

2. "Morte cerebral" como discorre o CFM em sua Resolução 1752/04 não existe na medicina.

3. Pessoas ou fetos com lesão restrita ao cérebro, erroaneamente consideradas como "anencéfalas" , não podem ser diagnosticadas como mortas.

4. A expressão leiga "anencéfalo" não corresponde à ausência de encéfalo (pelo contrário), que é onde pelas regras vigentes na medicina mundial, inclusive no Brasil, na Resolução CFM 1.480/97, determinada pela legislação transplantadora de 1997, deve obrigatoriamente ser diagnosticada a morte encefálica.

5. Uma decisão judicial que ignore os fatos neurológicos relativos a esse julgamento, estará contrariando ou mudando os critérios mundialmente aceitos para definir existência de vida humana, que nada tem a ver com sua "perspectiva de futuro" ou "viabilidade" em nossa legislação constitucional. A aceitação da premissa incondicional de vida ser o que tem "perspectiva de futuro" ou "viabilidade" trará consigo práticas espúrias dentro e fora da medicina, como demonstramos neste texto.


Entenda-se também que muitos neonatos "encefálicos" são capazes de manter a respiração, mantendo o tronco encefálico funcionante. Alguns possuem mesmo parte do cérebro presente. A maior parte dos "anencéfalos" nasce em parada cardio-respirató ria (natimortos, portanto). Esses dados demonstram que o termo "anencefalia" é tecnicamente incorreto, pois pressupõe ausência total do encéfalo. Alguns autores têm proposto os termos meroanencefalia e holoanencefalia para a diferenciação dos casos em que há ausência parcial e total do encéfalo, respectivamente. Por outro lado que aumenta a gravidade da desinformação, casos menos severos de meroanencefalia podem sobreviver vários anos. E a decisão que pode vir a ser proferida pelo STF não estará distinguindo essas diferentes situações.

Ao contrário do que foi emitido nos considerandos da recente Resolução 1.752/04 do CFM, que autoriza a retirada de órgãos de "anencéfalos" para transplantes, a afirmação preliminar do CFM de que “os anencéfalos são natimortos cerebrais” não pode ser aceita como verdade.


Pressupõe esses considerandos da Resolução 1752/04 do CFM que o conceito de morte cortical, ou seja de pessoas nas quais as “higher brain functions” se encontram na aparência irreversivelmente inativas, apesar de que as funções neurovegetativas mediadas pelo tronco encefálico e pelo diencéfalo se encontrem ainda ativas - tal como ocorre com o chamado “estado vegetativo persistente” em que o indivíduo continua respirando e deglutindo por meses ou anos e, eventualmente, em até 20% dos casos, podem recuperar a consciência, devem ser consideradas como mortas. Essa idéia, contida na Resolução 1752/04 do CFM sobre extração de órgãos de "Anencéfalos" , não tem sido aceita em qualquer país em nenhum dos três níveis de discussão enumerados acima: filosófico, conceitual ou diagnóstico.

Em outras palavras, não existe morte “cerebral”, apesar de que a cultura leiga utilize largamente este termo com falta de propriedade, mas existe sim apenas morte encefálica, pois em todas as culturas a sustentação da capacidade de respirar é considerada virtualmente excludente do diagnóstico de morte encefálica. A utilização desse termo na Resolução 1752/04 do CFM, mesclando a terminologia leiga inapropriada, que confunde esse termo com o que na realidade é de fato a morte encefálica, não a morte cerebral, com a terminologia técnica inexistente (pessoas com lesão restrita ao cérebro não podem ser diagnosticadas como mortas), representa portanto um artifício que deve ser acusado de imediato, preliminarmente e nunca aceito como PREMISSA VERDADEIRA, sob pena de que toda a discussão subseqüente traga fatalmente o sucesso daqueles que querem utilizar o "anencéfalo" como simples fonte de órgãos e tecidos transplantáveis ou tratá-los como cadáveres desde logo, o que é necessário para atingir o primeiro objetivo.


Está evidente que a decisão de permitir a "interrupção da gravidez" de "anencéfalo", tem como verdadeira intenção poder dispor de seus órgãos depois de nascido, diante da recente Resolução 1.752/04 do CFM que já existe para essa finalidade. Uma vez decidida a permissão judicial da "interrupção da gravidez" do "anencéfalo", tudo que os gestores da medicina brasileira farão será orientar "técnicas de abordagens" às gestantes desses fetos, para que eles nasçam e seus órgãos sejam retirados. Há Estados que possuem projetos de leis (ou leis em vigor) que conferem vantagens econômicas às famílias de doadores de órgãos. No caso dessas gestantes, é muito fácil fazer-lhes uma proposta vantajosa.

O segundo considerando da Resolução 1.752/04 do CFM sobre os "anencéfalos" , afirma que para os "anencéfalos" , por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica", encerra uma afirmação inverídica: há “anencéfalos” (na realidade portadores de meroanencefalia leve) que sobrevivem vários anos. Fato que não pode ser ignorado pelos julgadores. Estes também serão vítimas dos gestores da medicina brasileira, diante da Resolução já existente.


Além do mais, a utilização, neste segundo considerando da Resolução do termo tecnicamente correto (“morte encefálica”) em oposição ao conceito tecnicamente incorreto (“morte cerebral”) utilizado no primeiro considerando, é claramente demonstrativo da ardilosidade que caracteriza essa nova Resolução do CFM: verifique-se que a expressão “por sua inviabilidade vital” é uma referência evidente ao conceito de “morte cerebral” exarado no primeiro considerando.


Na realidade, a Lei Federal de Transplantes de 97 não dá ao CFM a autoridade para mudar o conceito de morte (nível conceitual de discussão), alterando-o de morte encefálica para morte cerebral, como ele o fez na sua recente Resolução 1752/04, que permitiu a extração de órgãos de "anencéfalos" , mas apenas para estabelecer como será reconhecido o indivíduo portador da condição pré-definida pelo conceito de morte encefálica.

A permissão judicial para a "interrupção da gravidez" trará um forte corolário de graves situações que irão muito além do que pretende-se julgar no STF, que por si só já é de enorme gravidade.

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Links em www.biodireito- medicina. com.br :
http://www.biodirei to-medicina. com.br/website/ internas/ anencefalia. asp?idAnencefali a=158
http://www.biodirei to-medicina. com.br/website/ internas/ anencefalia. asp?idAnencefali a=159
http://www.anenceph aly.net/anenceph aly.html

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A VIDA E A MORTE NO ATO MÉDICO

Franklin Cunha – Médico
CREMERS 3254
TEGO 256/69

No último jornal do CREMERS o Dr. Marco Antônio Becker, como presidente do nosso Conselho Regional emitiu opinião favorável à interrupção da gestação de fetos presumivelmente anencéfalos e afirma que " É um direito da mãe solicitar a antecipação do parto. Além do risco inerente à gestação, a sua manutenção pode significar um sacrifício sem finalidade". E segue, adiante: " O diagnóstico seguro de anencefalia é realizado durante a gestação pelos exames de ultra-sonografia e dosagens da alfafetoproteí na ". E mais: " Não há porque a mãe, contra sua vontade, correr o risco de morte ao levar uma gestação a termo com um feto cerebralmente morto no seu ventre".

As afirmações do Dr. Becker que cremos equivocadas são de várias ordens.
Em primeiro lugar, são as atinentes à conduta obstétrica. A menos recomendável e mais iatrogênica é a interrupção de uma gravidez em evolução, seja por estimuladores das contrações uterinas seja por cesariana. São consideráveis os riscos de ruptura uterina com suas graves conseqüências na atual e nas futuras gestações.
Segundo. O diagnóstico da anencefalia não está isento de erros de interpretação, mesmo com os exames citados.

Terceiro. Gestações de fetos anencéfalos não aumentam sequer um ponto nas taxas de mortalidade materna. Antes da ultra-sonografia, as gestações e os partos de fetos anencéfalos decorriam normalmente e nos defrontávamos, quase sempre, com duas surpresas: a primeira com a constatação da malformação; a segunda, com o vínculo, apego e o afeto que se estabelecia entre as mães e seus recém-nascidos quando estes viviam alguns dias. Eles eram batizados, recebiam um nome, não raras vezes os pais os registravam em cartório e morriam agarrados às mãos da mãe entre choro e lágrimas dos familiares, os quais ficavam com a sensação reconfortante e inculpada de ter amado seu filho mesmo pelo breve tempo de vida que “ Deus lhe tinha dado “ (sic). E assim podiam dizer: “Não matamos nosso filho, ele morreu“.

Assim, acreditamos que diante de uma constatação segura de um feto anencéfalo, obtida através da tecnologia atual, nossa conduta deve ser preventiva, não através da eliminação do feto, mas sim no sentido de acompanhar e preparar a família para o necessário luto que sempre acompanha este desagradável evento. Esta é, cremos, a legítima e hipocrática arte obstétrica que nossos mestres nos ensinaram. O eminente Dr.Di Lorenzi, professor de bioética diz “que os critérios utilitaristas e as tentativas de definição de vidas viáveis são a mais pura definição de princípios eugênicos e obedecem a orientações político-ideoló gicas.“. E a professora Lívia Pithan, especialista em bioética afirma que : “ O perigo de se usar argumentos para desqualificar a vida humana nos situa numa“ ladeira escorregadia “, donde se pode deslizar para tudo“ como a trágica experiência do Terceiro Reich nos demonstrou e, penso, nos tenha convencido do contrário com o fortíssimo argumento representado por quarenta milhões de mortos.

Enfim, pensamos que diante de eventos envolvendo malformações fetais e na vigência dos debates sobre propalado ATO MÉDICO, cabe uma pergunta: estará dentro das atribuições dos médicos, irredutíveis defensores da vida, decidir sobre a morte de seres humanos?

A aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica

Marília Andrade dos Santos

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)


Resumo: O presente estudo objetiva esclarecer a situação da aquisição de direitos pelos fetos anencéfalos. Para tanto, buscou-se analisar os requisitos para a aquisição de direitos, as categorias de direitos por meio dos quais um indivíduo pode ser contemplado, as definições de morte validadas pela Medicina e, sobretudo, os critérios legais para a aferição do término da personalidade civil, principalmente o critério de morte encefálica.

Palavras-chaves: Anencefalia, Aquisição de Direitos, Morte Encefálica.

1. INTRODUÇÃO

O Direito brasileiro concede uma ampla proteção ao indivíduo. Tanto é assim que a Constituição Federal reservou um Título inteiro para a abordagem "dos direitos e garantias fundamentais", utilizando doze longos artigos para tratar do tema. No entanto, o rol não é taxativo, e fez a Constituição Federal questão de dizê-lo, como se percebe da análise do §2° do art. 5° da Carta Magna [01].Verifica-se, portanto, que a concessão e a proteção destes direitos é matéria de extrema relevância para o estudo do Direito e para seus operadores.

Ocorre que a aquisição de direitos, até então questão pacífica, tanto para a doutrina quanto para a jurisprudência, navega por águas tormentosas quando se procede a análise da situação do feto anencefálico. E isso, principalmente, a partir dos últimos anos, com os avanços das técnicas médicas, quando foi possibilitado saber com antecedência se, no parto, será dada luz a um feto portador desta anomalia. Este feto adquire direitos? Se a resposta for positiva, em qual momento de sua existência os perde? Adquiriria patrimônio após o nascimento com vida?

Estas questões ganham relevância ainda maior se for considerado que o Brasil possui a quarta maior incidência de gravidezes de fetos anencefálicos do mundo, ficando atrás apenas de México, Chile e Paraguai, conforme dados da OMS – Organização Mundial da Saúde [02].

Em razão destes dados, este estudo visa tornar mais clara a situação da aquisição de direitos pelos fetos portadores de anencefalia. Para tanto, serão analisados os requisitos para a aquisição de direitos, as categorias de direitos com os quais um indivíduo pode ser contemplado, os conceitos de morte adotados pela Medicina e, principalmente, os critérios legais para a aferição do término da personalidade civil, em especial o critério de morte encefálica introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 1997 com a Lei 9.434.

Por fim, após análise dos posicionamentos dos doutrinadores acerca do tema, será estabelecida uma solução que, espera-se, esteja de acordo com a realidade física e social do anencéfalo.

CAPÍTULO 1

DA AQUISIÇÃO DOS DIREITOS PELA PESSOA

1.1 Da aquisição de direitos

Reza o art. 1° do Código Civil de 2002 (melhorando a redação do art. 2° do Código Civil de 1916) que toda pessoa é capaz de direitos e de deveres. O conceito de pessoa trazido pela norma civil abrange o conceito de pessoa natural (ou ente humano), mas com ele não se confunde. Isso porque é pessoa tanto o ente humano como o ser criado pelo homem que, de uma forma ou de outra, possa ser sujeito de direitos (pessoa jurídica) [03].

Ao conceito acima colacionado se integra um instituto que está presente em todos os ramos do Direito: a capacidade. Com relação especificamente ao Direito Civil, que é o que interessa a este estudo, a capacidade pode ser traduzida como a aptidão do indivíduo de se tornar sujeito de direitos, de possuir direitos e deveres civis.

Esta aptidão manifesta-se de duas formas, de acordo com as possibilidades de ação do sujeito. Pode ser capacidade de direito (ou de gozo) ou capacidade de fato (ou de exercício). A primeira expressa a capacidade/possibilidade de adquirir direitos e deles fruir, bem como de contrair deveres e/ou obrigações.

Por seu turno, a capacidade de fato é aquela através da qual o indivíduo pode, ele mesmo, praticar os atos da vida civil, sem contaminá-los com o vício da nulidade ou da anulabilidade. É a esta última capacidade (ou à sua falta) que o Código Civil faz alusão em seus artigos 3° e 4°.

É correto dizer que somente é possível a ocorrência de capacidade de fato se previamente houver capacidade de direito. No entanto, a recíproca não é verdadeira. Um indivíduo pode ser capaz de gozar um direito sem poder, no entanto, reclamá-lo ou protegê-lo por si mesmo. Tanto é assim que uma criança (pessoa absolutamente incapaz) pode herdar, ser adotada e receber um nome – capacidade de direito. No entanto, não pode dispor de seus bens sem a representação de seus pais nem assumir obrigações por si mesma – exteriorizações da capacidade de fato.

Por outro lado, a capacidade aludida no art. 1° do Código Civil não torna automaticamente o indivíduo titular de direitos. Estes direitos somente passam a integrar a esfera jurídica de uma pessoa no momento em que esta adquire personalidade civil. O conceito de personalidade pode ser resumido como a reunião dos direitos e deveres de um indivíduo, fazendo de um ser animado uma pessoa [04].

Importante ressaltar que os seres animados não dotados de racionalidade podem ser objeto de proteção jurídica. Como exemplo, é possível a citação dos animais, cuja matança é proibida e até mesmo punida com cerceamento da liberdade do ser humano. No entanto, tal não significa dizer que os animais são dotados de personalidade jurídica, e esta proteção não pode ser confundida, de forma alguma, com a outorga de direitos a estes seres.

Na realidade, a proteção legal a estes seres é concedida com o fim de garantir proteção ao próprio homem. Para tanto, procura frear seus instintos, possibilitando que o meio ambiente em que vive não seja destruído, e evitando, assim, a extinção da própria espécie humana.

O conceito de personalidade, embora esteja intimamente relacionado ao de capacidade, com este não se confunde. Capacidade é atributo da personalidade. "Capacidade exprime poderes ou faculdades; personalidade é a resultante desses poderes; pessoa é o ente a que a ordem jurídica outorga esses poderes [05]".

Quanto aos requisitos para a aquisição da personalidade, alguns códigos civis fizeram várias exigências: forma humana, viabilidade e vida autônoma com relação à mãe por determinado período [06].

Destes requisitos, o menos pertinente parece ser o da forma humana. Isso porque se configura pouco lógico admitir que um ser fruto da união de gametas humanos não tenha forma humana e, portanto, não tenha natureza (vida) humana [07] [08], não merecendo a proteção do Estado. Inclusive, a adoção deste requisito como indispensável à aquisição de personalidade jurídica pode levar ao cometimento de equívocos, como considerar uma pessoa portadora de defeitos físicos como um ser não humano, e, inclusive, de barbáries, como o abortamento eugenésico [09].

Com relação aos outros dois pressupostos, ao se negar direitos aos fetos poder-se-á estar chancelando práticas abortivas, o que é um preço bastante alto para um Estado Democrático de Direito, que prega a proteção de todos os indivíduos, sem distinção de qualquer natureza, inclusive de idade e estado.

Quanto ao aspecto objetivo, todos os três requisitos apresentam um problema de difícil solução: a complexidade de conceituação. Ora, o que se pode definir como forma humana? Quanto tempo é necessário para que o indivíduo sobreviva fora do útero materno para que seja considerado digno para adquirir personalidade jurídica? Quais os tipos de doença que podem indicar uma não-viabilidade de vida? Aquelas que condenam o indivíduo à morte, mesmo que não se saiba quando esta ocorrerá?

Buscando fugir de conceituações duvidosas e problemas de interpretação, nosso sistema jurídico não se centrou nestes requisitos, requerendo apenas para a aquisição de direitos pelo nascituro [10], o nascimento com vida. Pressupôs, assim, que todo produto de mulher é um ser humano por excelência e que não é a viabilidade ou potencialidade de vida que tornam um feto mais ou menos digno da proteção do Estado e da aquisição de direitos.

No entanto, mesmo erigindo o nascimento com vida como requisito indispensável à aquisição da personalidade, o ordenamento jurídico pôs a salvo (como melhor será tratado adiante) os direitos deste ser em formação desde a concepção [11].

Não existem dúvidas da ocorrência de vida quando o indivíduo nasce e cresce, seguindo o ciclo normal da vida. A questão torna-se menos singela quando o feto, logo após o parto, vem a falecer. Como saber se efetivamente viveu?

A vida é entendida pelo Direito, nestes casos, como a ocorrência de respiração, sob a máxima: respirou, logo nasceu com vida. É o que se depreende da análise do art. 53, §2° da Lei 6.015/73. Mas, se houver dúvidas a respeito da ocorrência da respiração, deve-se recorrer à Medicina, especialmente a Forense.

Assim sendo, realiza-se a chamada Docimasia Respiratória, exame pelo qual os pulmões do feto são colocados em água. Se flutuarem, indica que seus pulmões foram cheios de ar pelo menos uma vez, pelo que viveu, adquirindo todos os direitos daí decorrentes. Se, entretanto, seus pulmões afundarem, não houve troca de gases entre o feto e o meio ambiente, não há que se falar em vida e em aquisição de direitos. O feto é, então, um natimorto [12].

Sobre a correção ou não deste critério de declaração de vida e, por conseqüência, da identificação de ocorrência de morte, nos deteremos mais no próximo ítem, já que aqui se está trabalhando com uma visão geral do funcionamento e dos ditames das leis civis brasileiras.

Quanto ao momento da aquisição da personalidade, os doutrinadores divergem, defendendo três teorias.

A primeira delas, a Teoria Natalista, afirma que o indivíduo somente adquire a personalidade e, portanto, somente adquire direitos, no momento do nascimento. Antes desta ocasião o nascituro nenhum direito possui. Esta doutrina é adotada por vários países, como Portugal, Alemanha e Itália [13].

A Doutrina da Personalidade Condicional, também chamada de Falsa Doutrina Concepcionista, apregoa que o nascimento com vida é condição suspensiva para a aquisição de direitos (personalidade). Assim, o nascituro possui, desde a concepção, mera expectativa de direitos, sendo a aquisição plena condicionada (suspensivamente) ao nascimento com vida. É adotada pelo Código Civil francês [14].

Uma terceira corrente defende que os direitos são adquiridos pelo nascituro desde a concepção, independentemente do nascimento (com ou sem vida). É a Doutrina Concepcionista, adotada, por exemplo, pela Argentina [15].

Existem, ainda, alguns que entendem que o início da vida e, portanto, a aquisição de direitos somente se daria com a nidação [16] ou com a formação das células nervosas do embrião – o que ocorre aproximadamente no décimo quarto dia após a fecundação. Este é, inclusive, o argumento alegado para a permissão/legalização de experiências com embriões congelados e para que não se considere como conduta abortiva a utilização da pílula do dia seguinte.

No entanto, tais posicionamentos são minoritários e (ainda) não foram adotados pela legislação civil, pelo que não merecem maiores comentários.

Grande parte da doutrina brasileira entende ser a Teoria da Personalidade Condicional a teoria adotada por nosso ordenamento jurídico. Veja-se o que foi dito por Sílvio Venosa:

O fato de o nascituro ter proteção legal não deve levar a imaginar que tenha ele personalidade tal como a concebe o ordenamento. O fato de ter ele capacidade para alguns atos não significa que o ordenamento lhe atribua personalidade. Embora haja quem sufrague o contrário, trata-se de uma situação que somente se aproxima da personalidade. Esta só advém do nascimento com vida. Trata-se de uma expectativa de direito [17].

O mesmo é defendido por Nélson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery e por Orlando Gomes:

(…) Mesmo não havendo nascido com vida, ou seja, não tendo adquirido personalidade jurídica, o natimorto tem humanidade e por isso recebe proteção jurídica do sistema de direito privado, pois a proteção da norma ora comentada a esse se estende, relativamente aos direitos de personalidade (nome, imagem, sepultura etc.) (sem grifos no original) [18].

A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida. Não basta o nascimento. É preciso que o concebido nasça vivo. O natimorto não adquire personalidade (…).

Como visto, desde a concepção asseguram-se direitos ao nascituro equiparado que é à pessoa, no seu interesse. (grifos do original) [19]

Roosevelt Arraes, no entanto, entende que o disciplinado pelo Código Civil não possa ser interpretado literalmente:

Disposição legislativa que pode levantar dúvida interpretativa é aquela disposta no art. 4° do Código Civil Brasileiro (referência ao Código Civil de 1916. No Código Civil de 2002 o art. é o 2°) que traz a expressão "nascimento com vida" como condição suspensiva para a aquisição da condição de pessoa.

O referido dispositivo legal não pode ser interpretado literalmente. Para superar esta dúvida é importante trazer à lume a lição do Professor Reinaldo Pereira e Silva:

"A resposta é simples: a qualidade de pessoa o nascituro adquire desde a concepção, de maneira incondicionada no que concerne aos direitos da personalidade, como o ‘direito de nascer’, e condicionada ao nascimento com vida para efeitos patrimoniais (doações, legados etc.)." (grifos do original) [20]

E conclui:

a)O nascituro possui todos os direitos da personalidade desde sua concepção estando condicionados, ao nascimento com vida, somente a realização de formalidades jurídicas e a aquisição de direitos patrimoniais (…);

b)Os direitos patrimoniais do nascituro se tornam efetivamente seus, com o implemento da condição suspensiva do nascimento com vida.

Parece-nos que Roosevelt Arraes possui maior razão ao minimizar a força doutrinária contida no dispositivo legal, já que, da análise da realidade da prática jurídica, é possível perceber que a incidência da Teoria da Personalidade Condicional não é absoluta.

Ora, para a correta identificação da teoria à qual nosso ordenamento se filia, parece ser necessária a análise do ordenamento jurídico como um todo uníssono (e não exclusivamente do Código Civil) e, principalmente, da natureza dos direitos a serem adquiridos pela pessoa.

Pode-se dividir os direitos do homem em duas vertentes: os direitos que dizem intimamente com a sua qualidade de indivíduo e os que decorrem de vantagens que possuirá frente aos outros indivíduos, com os quais se relaciona. Aos primeiros, chamaremos de direitos de humanidade [21] e, aos últimos, de direitos de relação.

Os direitos de humanidade são aqueles direitos próprios do indivíduo, inatos, decorrentes de sua natureza humana, que são oponíveis erga omnis e que geram o "dever de exigir um comportamento negativo dos outros [22]".

Nesta categoria, podem ser enquadrados todos os direitos ligados à dignidade da pessoa humana, todos os direitos garantidos constitucionalmente e que protegem o homem como ser humano. Dentre eles, podemos citar o direito à vida, à saúde, à integridade física, moral e intelectual, à imagem, à liberdade e à filiação.

Inato é tudo aquilo que nasce com o indivíduo, que está presente desde a sua formação. Assim sendo, os direitos de humanidade são aqueles direitos que estão com o indivíduo desde o momento em que ele pode ser considerado um ser humano. Ora, este momento é precisamente (ao menos de acordo com a posição majoritária) a concepção [23].

É importante que seja frisado: tais direitos são adquiridos plenamente desde a concepção e admitir o contrário seria falta de observação da realidade jurídica em que vivemos.

Ora, tomando como exemplo o direito à vida, parece no mínimo contraditório dizer que o nascituro tenha expectativa deste direito, vindo somente a adquiri-lo após o nascimento com vida. Se assim fosse, não seria punível o abortamento. E isso, justamente porque um feto abortado nunca poderia nascer com vida para concretizar seu direito a esta vida. Assim, que direito teria sido violado pelo agente ativo do delito? Mostra-se descabida interpretação neste sentido [24].

Pelo que foi exposto, afigura-se inviável a alegação de que estes direitos somente seriam adquiridos pelo feto com o nascimento com vida, estando apenas resguardados pelo ordenamento jurídico desde a concepção.

Assim, inaplicável o entendimento da Doutrina da Personalidade Condicional à hipótese destes direitos.

A situação, no entanto, é diversa no que se refere aos direitos de relação. Estes direitos são relativos ao indivíduo quando relacionado com outros indivíduos e demonstram seu favorecimento ou vantagem em face destes outros indivíduos. Tais direitos não teriam existência não fosse a característica essencial e marcante do homem que é justamente o viver em comunidade, o inter-relacionamento.

Este relacionamento somente poderá ser mantido pelo indivíduo após o seu nascimento, daí porque o ordenamento jurídico afirmou que somente com o nascimento com vida estes direitos seriam adquiridos.

Entretanto, inegável que desde a concepção o nascituro já existe e, justamente em razão da grande possibilidade de que venha a nascer com vida é que foi estipulada a salvaguarda dos direitos futuros desde o início da vida. Assim, o nascituro possui, desde a concepção, expectativa de adquirir os direitos de relação com o seu nascimento. No entanto, tal expectativa está condicionada ao seu nascimento com vida.

Uma dúvida pode surgir: o nascituro já não mantém relacionamento com outros indivíduos (notadamente com sua genitora)? Então, por que não adquirir os direitos desde a concepção? A resposta há de ser afirmativa, mas merece ressalva.

Este relacionamento mantido pelo nascituro é um relacionamento incipiente, incompleto, já que o nascituro ainda não é um ser autônomo. Não se está aqui a defender a tese de que o nascituro ainda faz parte do corpo da mãe e que, portanto, não seria um indivíduo, mas apenas coisa. De forma alguma!

No entanto, não é possível afirmar que o ser no ventre materno tenha capacidade de se relacionar plenamente com os outros indivíduos. Desta forma, deverá receber os direitos de forma proporcional ao relacionamento que mantém com os demais indivíduos, razão pela qual é impossível que adquira os direitos de relacionamento de forma plena desde a concepção.

Se não chegar a manter um relacionamento pleno com os outros indivíduos, a aquisição dos direitos será frustrada, mantendo-se no patamar da mera expectativa.

Fazem parte dos direitos de relacionamento os direitos patrimoniais e os direitos obrigacionais. Note-se a clara presença da necessidade de outros indivíduos para que estes direitos existam e possam ser exercidos pelo seu titular.

Analisando a realidade jurídica, é possível perceber que os direitos de humanidade poderão ser objeto de pedidos judiciais para que sejam respeitados desde a concepção, pois que foram adquiridos de forma plena e incondicional já neste momento.

Com os direitos de relação, no entanto, a situação é diversa. É possível que o nascituro pleiteie a garantia destes direitos desde a concepção, que serão cautelarmente garantidos contra lesões, em razão da controvérsia existente sobre eles e por ser o nascituro titular de expectativas de direito sobre eles, mas o provimento judicial final ficará sobrestado até que ocorra o nascimento, a fim de que se verifique de quem é a titularidade e a legitimidade sobre este direito.

Do acima exposto, torna-se clara a distinção entre as categorias de direitos existentes em nosso ordenamento e a adoção das duas doutrinas de aquisição de direitos (Doutrina da Personalidade Condicional e Doutrina Concepcionista) por nosso ordenamento jurídico.

Da incidência destas duas doutrinas decorre que o indivíduo passa a adquirir dupla personalidade: uma quando é concebido - tornando-se capaz de possuir apenas alguns direitos – e outra como conseqüência do nascimento com vida. No entanto, tal se apresentaria impossível, já que a personalidade é uma, indivisível. Não é um quantum, mas uma característica da pessoa.

Esta aparente contradição do sistema jurídico é enfrentada pela doutrinadora Maria Helena Diniz, que encontrou uma solução bastante interessante para o problema.

Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intra uterina tem o nascituro (…) personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, ou melhor, aos direitos da personalidade, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção (…), passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais, que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (CC, art. 1.800, §3°). Se nascer com vida adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer nenhum direito patrimonial terá (grifos no original) [25].

O promotor Leonardo Barreto Moreira Alves, no entanto, criticando o posicionamento acima transcrito, entende ser impossível a divisão da personalidade em duas, afirmando ser ela una e indivisível.

Não obstante ser esse o posicionamento atual do Código Civil (no sentido de adotar a Teoria da Personalidade Condicional), cresce cada vez mais na doutrina e na jurisprudência a teoria concepcionista para permitir que o nascituro adquira, de logo, direitos de ordem patrimonial.

Assim, a concepção seria o marco para a aquisição da personalidade jurídica plena, não mais a condição suspensiva do nascimento com vida.

Ora, é no mínimo ilógico admitir a fração da personalidade em duas. Ela é uma e plena: ou está configurada em um único momento ou então ainda não existe. Não há meio termo.

Data maxima venia, inadmissível a dicotomia entre personalidade formal e material.

O conjunto dos direitos da personalidade configura uma universitas júris, um todo ilimitado [26].

Data venia, parece que o promotor equivoca-se ao afirmar que a personalidade é una e plena e que os direitos patrimoniais integram os chamados direitos da personalidade, formando uma universitas júris.

Ora, dissemos anteriormente que a personalidade é o conjunto dos direitos que se manifestam através da pessoa e que possuem duas classes de direitos: os direitos de humanidade e os direitos de relação.

Assim sendo, há um tipo de personalidade para cada grupo de direitos a ser adquirido pelo indivíduo que, quando a todos adquire, passa a possuir uma personalidade plena. Antes deste momento, ela é apenas parcial e referente aos direitos já adquiridos.

Na realidade, o entendimento do promotor parece confundir personalidade com humanidade. A característica do humano é adquirida com a concepção. Contudo, direitos há que necessitam mais do que a humanidade para que passem a integrar o rol de direitos de um indivíduo. Estes são, como dito acima, os direitos de relacionamento.

Desta forma, parece que a solução mais adequada foi a encontrada pela doutrinadora Maria Helena Diniz, não havendo equívocos doutrinários em subdividir a personalidade jurídica do indivíduo.

1.2 Da perda de direitos

Como acima visto, a questão quanto à aquisição de direitos é bastante tormentosa e está longe de ser pacificada, mesmo tendo o Código Civil se ocupado da disciplina da matéria em seus artigos iniciais.

O momento da perda dos direitos pelo indivíduo ou, mais precisamente, da cessação da personalidade civil, não escapa à turbulência e está, cada vez mais, gerando discussões no âmbito médico-jurídico, mesmo tendo o Código Civil disciplinado que este ocorrerá com a morte, nos termos do art. 6°.

Em geral, os doutrinadores (ao menos os manualistas) não tecem maiores considerações sobre o momento da cessação da pessoa natural. Afirmam, apenas, que a personalidade jurídica se extingue com a morte real, mas não conceituam o que seja esta morte [27]. Acreditam ser mais interessante o magistério acerca da comoriência e da ausência, ocupando com estes temas várias páginas de seus tratados.

No entanto, a definição da morte é um tema bastante importante e, de forma alguma, deve ser negligenciado pelo Direito, já que, em razão das novas técnicas criadas pela Medicina e que estão cada vez mais ao alcance da maioria da população, o conceito de morte que nos foram transmitidos durante anos evoluiu.

Antigamente, utilizava-se o critério respiratório como definidor de morte: estava morto todo aquele que não mais respirasse. Nesta época, eram utilizados espelhos e penas para a aferição da respiração. Se o espelho ficasse molhado pelo vapor dos pulmões ou se a pena se movesse era sinal que a vida ainda não havia abandonado o corpo e o indivíduo ainda existia, para todos os fins de direito. Caso contrário, o enterro era imediatamente preparado [28].

Este critério mostrava-se altamente falho, pois casos havia em que a respiração era muitíssimo fraca, imperceptível, incapaz de mover a pena ou marcar o espelho. Assim, mesmo respirando e, portanto, vivas, as pessoas eram dadas como mortas, não recebendo auxílio médico adequado que lhes poderia evitar o fim trágico.

Aliado à questão da falibilidade encontra-se a evolução da Medicina ao criar aparelhos de ventilação mecânica, que passaram a possibilitar aos mortos respiratórios uma sobrevida e postergar o evento morte.

Em razão destes aspectos, este critério foi abandonado, cedendo espaço à aferição da vida através dos batimentos cardíacos. Com base neste critério, estaria morto todo aquele que deixasse de ter seu sangue circulando pelo corpo, todo aquele cujo coração parasse de bater [29].

A utilização deste critério não apresenta os riscos que o critério respiratório trazia, pois que de fácil verificação a atividade do coração. Assim, foi amplamente utilizado e adotado, sem que de qualquer forma fosse questionado pela Medicina ou pelo Direito. Tanto que a doutrina entende ser este o critério que deve ser utilizado para a interpretação da norma do art. 6° do Código Civil.

No entanto, a evolução da ciência e a aplicação de massagens cardíacas e de desfibriladores fez com que a morte circulatória pudesse ser amplamente combatida, retirando muitos indivíduos das garras da morte e os restituindo à vida.

Só que estes procedimentos causaram um fenômeno nunca visto pela Medicina: a grande quantidade de pessoas vivas que, em razão da falta de oxigenação de seus cérebros decorrentes de parada cárdio-respiratória ou de danos cerebrais causados por choques mecânicos, ficavam sem consciência e em estado vegetativo por longos anos, sem que apresentassem qualquer tipo de melhora – permanecendo vivas até que o músculo cardíaco "cansasse" de bater. Estes pacientes incharam os Centros de Terapia Intensiva, tirando a possibilidade de muitos outros pacientes, com mais chances de sobrevivência e com maior qualidade de vida, de receber tratamento médico [30].

Outrossim, as técnicas médicas passaram a permitir a realização de transplantes de órgãos (principalmente o coração) com grandes chances de sobrevida para o transplantado. Mas para que os objetivos desta nova técnica fossem alcançados era necessário que tais órgãos continuassem em funcionamento nos instantes imediatamente anteriores ao transplante, sob pena de perecimento do órgão. Assim, surgiu a questão de que não era mais possível esperar a parada cardíaca do indivíduo para que o transplante fosse realizado.

Tal quadro fez com que a Medicina procurasse uma nova definição de morte. E a encontrou.

Trata-se da morte encefálica, mais conhecida como "morte cerebral [31]", cujo conceito começou a ser utilizado por um comitê da Universidade de Harvard [32], em 1968 [33]. Este conceito foi adotado logo após a realização do primeiro transplante e, a partir daí, foi aceito em praticamente todos os países do mundo desenvolvido [34].

Para que se entenda com clareza o alcance desta definição, mostra-se importante explicitar (ainda que de forma superficial e salientando apenas os aspectos mais importantes) em que consiste o encéfalo.

Trata-se de um componente do Sistema Nervoso Central [35] que se localiza dentro do crânio. É constituído de tronco cerebral, cerebelo e cérebro, observando-se que através da definição de cada um destes e de suas funções é possível se chegar à compreensão da importância e da função do encéfalo.

O tronco cerebral é a parte do encéfalo que está em contato com a medula espinhal, o que denota que se localiza na parte posterior do encéfalo. Esta região do encéfalo é responsável pelas funções básicas do indivíduo, como respiração, batimentos cardíacos e pressão arterial.

A parte que envolve o tronco cerebral é chamada de cerebelo e localiza-se na porção posterior do cérebro. É responsável pelos movimentos (atividade motora) e pelo equilíbrio.

O cérebro, por seu turno, é o órgão que ocupa quase a totalidade da cavidade craniana, razão pela qual normalmente é confundido com o encéfalo e as duas expressões são utilizadas como sinônimas. É dividido em duas partes iguais, chamadas de hemisférios cerebrais: o direito e o esquerdo. Suas funções básicas são: coordenação dos movimentos e dos sentidos, o raciocínio, as emoções e a aprendizagem.

Das funções citadas, é importante destacar que as funções que integram as capacidades cognitivas, ou seja, as funções que fazem de um indivíduo um ser consciente são desenvolvidas em uma parte muito especial do cérebro: o córtex cerebral. Este se encontra na parte externa do cérebro, com cerca de seis milímetros de espessura, e possui coloração acinzentada [36].

Verifica-se, portanto, que o encéfalo controla a vida do indivíduo e que sem seu funcionamento perfeito várias funções podem restar comprometidas, comprometendo, por conseqüência, as relações do indivíduo e sua própria vida.

Visto isso, passa-se à análise do conceito de morte encefálica.

Este critério de morte foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo para a consecução de transplantes e tratamento médico. O art. 3° assim estabelece:

Art. 3°. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina (sem grifos no original).

Estes critérios, aos quais a Lei de Transplantes faz alusão, foram fixados pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução n° 1.480/1997. O art. 3° da Resolução determina que somente poderá ser verificada a morte encefálica se esta for resultante de um processo irreversível e com causa conhecida [37]. Sem tais requisitos não se poderá falar em morte.

O art. 4° da mesma Resolução determina que este processo irreversível será constatado através de parâmetros clínicos, quais sejam, "coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinhal e apnéia".

Além da constatação destes parâmetros será realizado um exame complementar, no qual será verificada a circulação sanguínea intracraniana, a atividade metabólica cerebral ou a atividade elétrica cerebral. Se, realizado um destes exames, o resultado for positivo – presença de circulação sanguínea intracraniana, presença de atividade metabólica cerebral ou presença de atividade elétrica cerebral –, o diagnóstico de morte encefálica está descartado.

Assim, é possível perceber (não sem a ajuda da doutrina médica, já que a maioria dos conceitos acima colacionados não é de ampla assimilação pelo indivíduo leigo), que está morto todo aquele ser que perde, definitiva e irreversivelmente, as funções de todo o encéfalo, comprometendo irreversivelmente a vida de relação e a coordenação da vida vegetativa.

Ressalta-se que não é possível se falar em morte se somente a vida de relação for prejudicada, pois que esta vida, como acima relatado, é mantida por parte do encéfalo, precisamente o córtex cerebral, e não pelo encéfalo em sua totalidade. Outrossim, não é a perda definitiva da capacidade de manter as funções vegetativas que caracteriza um indivíduo como morto encefálico. É necessário que todo o encéfalo fique irreversivelmente lesionado e pare de funcionar.

Outrossim, não é a presença de certos estímulos nervosos que afasta a verificação da morte cerebral. Tal pode ser percebido através da análise do protocolo a ser preenchido pela equipe médica para a constatação da morte encefálica. O item E 1 do anexo assim dispõe:

Interessa, para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente, a arreatividade supraespinhal. Conseqüentemente, não afasta este diagnóstico a presença de sinais de reatividade infraespinhal (atividade reflexa medular) tais como: reflexos osteotendinosos ("reflexos profundos"), cutâneo-abdominais, cutâneo-plantar em reflexão ou extensão, cremastério superficial ou profundo, ereção peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros inferiores ou superiores, reflexo tônico cervical.

Nota-se que os reflexos referidos pela Resolução são coordenados pela medula espinhal, e não pelo encéfalo, e sua verificação em pacientes não afasta o diagnóstico de morte encefálica. Isso porque os nervos responsáveis por estes estímulos são diretamente ligados à medula espinhal, não interferindo o encéfalo em sua ocorrência. É a medula, por estar intacta, que coordena estes reflexos e permite que eles ocorram [38]. É por essa razão que sua verificação em pacientes em nada influi no diagnóstico de ausência de atividade encefálica e, conseqüentemente, de morte encefálica.

Importante ressaltar que a morte encefálica não se confunde com o coma [39]. Isto porque no coma o encéfalo está vivo e executa as funções de manutenção da vida. Pode não existir consciência ou movimentos voluntários, mas as demais funções cerebrais automáticas estão presentes, já que ocorrentes a circulação e a oxigenação cerebral. No caso da morte encefálica, apenas o coração pode continuar batendo (já que bate em razão de marcapasso próprio), mas as demais funções já não são mais realizadas.

A classe médica não atingiu unanimidade em relação à adequação e correção do conceito de morte encefálica, embora o Conselho Federal de Medicina (que definiu o conceito e os requisitos para a caracterização deste tipo de morte) tenha manifestado-se amplamente favorável à sua utilização.

A maior crítica da classe médica não reside na existência, em si, da conceituação da morte encefálica e de sua utilização pela Medicina. O que criticam na Resolução do Conselho Federal de Medicina é o chamado teste de apnéia [40]. Este teste é realizado em pacientes nos quais se perquiri a ocorrência da morte encefálica. Nele, o paciente é submetido ao desligamento dos respiradores por dez minutos, a fim de que se possa verificar se ele é capaz de respirar sem o auxílio dos aparelhos [41]. Findo o prazo, o respirador é religado.

Os especialistas afirmam que este teste acaba por lesionar definitivamente as células encefálicas, pois que estas ficam sem oxigenação por grande lapso temporal. Afirmam que o teste de apnéia é que seria responsável pela morte encefálica (irreversibilidade do quadro), e não a causa que deixou o paciente em estado de coma. Chegam a ponto de chamá-lo de medida antecipadora e determinante da morte, de procedimento homicida [42].

Entendem os médicos contrários aos parâmetros de identificação da morte encefálica que o correto seria que os exames complementares (que perquirem a ausência de atividade elétrica cerebral, de atividade metabólica cerebral e de perfusão sangüínea cerebral – art. 6° da Resolução do Conselho Federal de Medicina) fossem realizados antes do teste de apnéia, pois somente assim ter-se-ia acesso à real situação da atividade encefálica do paciente pretensamente morto.

Em razão da falta de conhecimento da área médica, não nos é possível a tomada de posição com relação ao acerto dos critérios utilizados pelo Conselho Federal de Medicina. No entanto, é certo que tal questão deve ser enfrentada pelo Conselho, já que não é possível se admitir que pacientes morram em razão da incorreção dos métodos e critérios médicos utilizados.

Também no campo filosófico o critério da morte encefálica não é entendido como idôneo. O filósofo australiano Peter Singer entende ser errônea sua determinação, entendendo-a como uma "ficção prática", embora dotada de logicidade, que serviria apenas para salvar órgãos para fins de transplante (e, conseqüentemente, vidas) e suprimir tratamentos inúteis (dada a irreversibilidade do quadro), já que seria impossível aceitar que indivíduos com o corpo quente e o sangue circulante estariam mortos [43]. Defende, assim, a correção somente do critério biológico de morte.

Parece, no entanto, que a solução trazida à tona pela conceituação da morte encefálica não é equivocada. Isso porque, com a perda irreversível da atividade encefálica (frise-se: o indivíduo não mais poderá retomar a atividade encefálica) o indivíduo deixa de ser um ente humano, pois que deixa de existir nele a característica essencial do ser humano e que o diferencia dos demais seres animados: a racionalidade. Assim, além de prática e lógica, a utilização da morte encefálica estaria também correta.

Neste sentido é a posição do penalista alemão Claus Roxin:

Penso, entretanto, e com a opinião dominante na ciência, que nada disso basta (referindo-se à ausência de rigidez cadavérica no morto encefálico) para que se fale de uma pessoa viva nos casos de morte encefálica. Pois a vida vegetativa, que existe de forma variada também na natureza, não é o suficiente para fazer de algo um homem. A pessoa encefalicamente morta carece, de antemão, de qualquer possibilidade de pensar ou sentir; falta-lhe o centro de integração, que estruturará as diversas funções do corpo numa unidade. O critério de morte encefálica como o momento da morte é, assim, um dado prévio antropológico, e não como que uma construção para possibilitar transplantes de órgãos [44].

Quanto ao Direito, parece que a determinação legal do conceito e a nova definição médica do que seja morte [45] não foram percebidos pelos aplicadores do Direito. Isso porque somente o adotam para as hipóteses de doação de órgãos, continuando a aplicar o conceito de morte clínica (cárdio-respiratória) para os demais casos e taxando como violadores do direito à vida os que defendem a utilização do conceito de morte encefálica a todas as hipóteses de ausência definitiva de atividade encefálica [46].

Esta situação se deve, especialmente, ao fato de que o assunto não é discutido nos meios acadêmicos. E isso em razão de ser muito pouco desenvolvido, ainda, em nosso país, o Biodireito, e de a Bioética ser um assunto trazido à discussão pelos operadores jurídicos somente há poucos anos (em razão de o desenvolvimento da Medicina remontar apenas às últimas décadas do século XX). Deve-se, em verdade, estimular o desenvolvimento desta área do Direito, já que traz grandes reflexos tanto na esfera pessoal como na esfera jurídica do indivíduo, principalmente quanto ao patrimônio.

CAPÍTULO 2

DA ANENCEFALIA

2.1 Conceito e características

A anencefalia é uma má-formação congênita resultante de defeito de fechamento do tubo neural. Esta estrutura fetal é a precursora do Sistema Nervoso Central [47], vale dizer, é a partir da formação do tubo neural que o Sistema Nervoso Central irá se formar. Assim, defeitos no tubo neural implicarão, certamente, em problemas futuros no Sistema Nervoso Central [48].

Este defeito de fechamento ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, já que é neste período em que o tecido formado pelas células fetais, que se apresentava até então em uma forma plana, começam a formar um tecido que se invagina, forma pregas, e começa a fechar-se completamente, formando uma estrutura tubular.

Para que melhor se entenda o processo de formação do tubo neural, é interessante que se proceda à transcrição da explicação do fenômeno realizada por um médico:

Hacia fines de la 3ª semana del desarrollo, el embrión tiene la forma de un disco aplanado. En la zona media de su cara dorsal se origina la placa neural, conjunto celular que en el periodo al que aludimos, da comiezo a un proceso de plegamiento, de invaginación, que continua con una progresiva elevación de sus bordes hasta juntarse, transformándose en un canal que en sucesivas etapas va cerrándose hasta constituir un tubo totalmente cerrado de orientación longitudinal con respecto a los diámetros del embrión. Una semana después, el tubo neural presenta una región caudal más estrecha que da origen a la médula espinal y tres vesículas cerebrales, más dilatadas, de posición anterior, que dan lugar a la formación del encéfalo o cerebro.

Desde la 4ª semana en adelante, si alguno de estos grupos celulares es dañado por un agente patológico, pueden producirse dos efectos opuestos: o matan al embrión o, de sobrevivir, el daño tenderá a ser definitivo, entre ellos, impedir el cierre total del tubo neural sitio y factor anátomo-topográfico desencadenante del proceso de anencefalia [49].

Assim, percebe-se que, no caso do anencéfalo, o tubo neural não se fecha completamente. O processo de fechamento do tubo neural se dá de forma incompleta e o indivíduo passa a ser portador do defeito da anencefalia.

Note-se que o problema com o fechamento do tubo neural não ocasiona somente a anencefalia. Esta somente ocorrerá se o defeito atingir a extremidade distal do tubo neural. Se, ao contrário, o defeito ocorrer na extensão do tubo neural dará origem à espinha bífida, má-formação na qual o feto tem a espinha exposta ao líquido amniótico ou separada deste por uma camada de pele [50].

A ocorrência da anencefalia não pode ser ligada a uma causa específica: é um defeito multifatorial. Especialistas a ligam, principalmente, às deficiências de vitaminas do complexo B, especialmente o ácido fólico. Tanto que prescrevem a ingestão, através de alimentos e suplementos vitamínicos, desta substância nos três meses anteriores ao início da gestação e nos três meses posteriores à concepção. Outrossim, no Brasil, foi determinado o enriquecimento da farinha com o ácido fólico, a fim de prevenir o aparecimento de defeitos do tubo neural.

Dentre os outros fatores desencadeantes dos defeitos do tubo neural em geral e, especificamente da anencefalia, é possível citar o álcool (que também pode gerar problemas psicológicos no feto), o tabagismo, o uso de antiepiléticos e outras drogas (lícitas ou não), alterações cromossômicas (genéticas), histórico familiar e exposição a altas temperaturas. No entanto, este rol não é taxativo [51] e não é possível precisar qual a contribuição exata de cada uma destas causas para que o tubo neural não seja corretamente cerrado.

Este defeito provoca que o cérebro do feto não seja formado, não possuindo o anencéfalo nenhum tecido cerebral ou, se possui-lo, este tecido é amorfo e encontra-se solto no líquido amniótico. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral [52].

Quanto ao tronco cerebral, este pode ou não apresentar defeitos, sendo mais comum que os apresente. No entanto, esta não é uma característica essencial. Disso se depreende que o feto anencefálico, em caso de o defeito não ter atingido o tronco cerebral, pode ser capaz de respirar sem a ajuda de aparelhos.

Assim, o que se observa é que, em realidade, a anencefalia não se refere à lesão de todo o encéfalo, mas somente de uma de suas partes – mesmo que a maior e mais importante delas – o cérebro.

Disso resulta que as funções superiores do Sistema Nervoso Central, como "consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade [53]", restam inexistentes em um feto portador de anencefalia, restando apenas funções inferiores, que controlam a respiração e as funções vasomotoras.

Quanto à extensão da lesão ao cérebro, os médicos costumam classificar a anencefalia em holocrania ou holocefalia e merocrania ou meroanencefalia. Na primeira não há qualquer tipo de tecido nervoso cerebral no feto; na segunda, há um tecido cerebral remanescente, o que não implica em dizer que a má-formação esteja afastada ou que seja real a possibilidade de vida extra-uterina [54].

No entanto, tal classificação se mostra desnecessária, sendo pertinente apenas para estudos médicos, pelo que nela não nos deteremos.

O diagnóstico da anencefalia pode ser feito já a partir do terceiro mês de gestação (entre a décima segunda e a décima quinta semanas), através da realização de ultra-sonografias. Isso porque o feto portador de anencefalia apresenta uma característica única e inconfundível: não possui os ossos do crânio (a partir da parte superior da sobrancelha não há osso algum), razão pela qual sua cabeça não possui o formato arredondado. É por este motivo que comumente o feto portador desta anomalia é chamado de feto-rã. No local (e apenas em alguns casos) há somente o couro cabeludo cobrindo a porção não fechada por ossos.

Visualmente, além da abertura que existe em sua cabeça, o anencéfalo possui os olhos saltados em suas órbitas, justamente porque estas não ficaram bem formadas em razão da inexistência dos ossos do crânio. Outrossim, seu pescoço é mais curto do que o pescoço de um feto normal.

Além do exame visual é possível a realização de exame biológico, através da análise dos níveis de alfa-fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico. Estes níveis, da décima primeira até a décima sexta semana de gravidez, encontram-se sempre aumentados em gestações de anencefálicos.

Desta forma, o diagnóstico da anencefalia é inequívoco e não existem possibilidades de erro.

Quanto aos números, é difícil precisar a incidência de casos de anencefalia. Acredita-se que a proporção de anencéfalos seja de seis décimos para cada mil nascidos vivos (clinicamente) e de dois a cada mil gestações [55]. Destes números fica claro que muitos dos fetos morrem (clinicamente) antes mesmo do nascimento.

A dificuldade em precisar o número de gestações de anencéfalos se deve, em primeiro lugar, ao fato de que muitos fetos morrem (clinicamente) ainda no útero materno e estas mães nem sempre levam este fato ao conhecimento dos médicos ou de um hospital. Em segundo lugar, as genitoras de fetos anencefálicos que expõe o problema à sociedade são (normalmente) as que necessitam de tratamento pela rede pública de saúde, já que as mães que possuem condições econômicas são assistidas por médicos particulares e, em grande parte, praticam com estes profissionais a interrupção da gestação.

Assim, os números podem chegar a ser maiores do que os que as estatísticas apontam. Mas, mesmo assim, já é possível perceber que o problema não é tão incomum quanto se imagina.

A gestação de um feto portador deste defeito congênito não é tranqüila para a genitora. Isso porque os efeitos psicológicos que uma gestação deste tipo provoca são intensos e devastadores para os sentimentos maternos e da família em geral. Imagine-se a situação psicológica da mãe que faz planos para seu filho, adquire móveis e enxoval, planeja seu nome e imagina as características físicas e psicológicas que terá após o nascimento e que, de repente, sem prévio aviso, se descobre grávida de um feto que não possui qualquer tipo de chance de sobrevida extra-uterina, mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer ainda antes de a gestação chegar a cabo. Inegável que os efeitos psicológicos sobre esta mulher são terríveis e inimagináveis.

Além destas conseqüências, a gestação de um anencéfalo pode trazer maiores riscos à saúde da genitora [56]. Dentre eles é possível a enumeração, a título de exemplificação, do prolongamento da gestação além do período normal [57], do aumento da pressão arterial [58] e do aumento do líquido amniótico [59], sendo que este último problema ocasionaria dificuldades de respiração e de funcionamento do coração da gestante, podendo levá-la ao óbito [60].

Ainda, com relação às características desta má-formação, importante definir que a anencefalia não se confunde com deficiência. A anencefalia é uma má-formação fetal que inviabiliza, na totalidade dos casos, a vida extra-uterina, sendo que quase a metade dos fetos portadores deste problema congênito falecem ainda no útero materno [61].

A deficiência, por seu turno, pode ser definida como lesões, limitações das atividades ou restrições de participação [62]. Pode decorrer da idade do indivíduo, de acidentes ou ser congênita. A deficiência não é incompatível com a vida, tanto que o Brasil, segundo o Censo realizado em 2000, teria mais de quatorze pontos percentuais de sua população portadora de algum tipo de deficiência [63].

2.2 O status do anencéfalo e a aquisição de direitos

A doutrina manifesta-se muito pouco acerca do status do feto anencefálico e da possibilidade ou não que ele possui de adquirir direitos. Fala-se mais com relação ao direito à vida, alguns lhe negando esse direito e outros lhe assegurando totalmente ou somente até determinado período, sempre procurando a solução a respeito da possibilidade ou não de punição da gestante e dos médicos em caso de aborto. A discussão cinge-se, então, à esfera penal e diz com apenas um dos tantos direitos que podem ser concedidos a um nascituro.

Mas a discussão levada a efeito no âmbito penal não é de todo inócua para o Direito Civil. Pelo contrário, é possível utilizar as discussões e os posicionamentos que existem nessa área do Direito e aplicá-los aqui, ampliando os conceitos para que abranjam a todos os direitos civis com os quais o nascituro pode ser contemplado.

Dentro deste quadro de análise é possível a individualização de duas correntes. A primeira delas concede ao anencéfalo todos os direitos civis aos quais um feto normal tem acesso. A segunda, entende que os anencéfalos não podem ser sujeitos de direito, baseando, no entanto, este entendimento em diferentes pontos de vista.

Passa-se à análise dos fundamentos e das conseqüências civis de cada uma delas.

A primeira corrente entende que o feto portador de anencefalia seria titular de direitos de humanidade desde a concepção e, em caso de respiração após o parto, adquiriria os direitos de relação. Assim, a anencefalia em nada alteraria a qualidade do feto portador desta má-formação (um ser humano igual a qualquer outro, sendo irrelevante dita má-formação) e nem tampouco as conseqüências de seu nascimento, em caso deste ocorrer com vida [64].

Esta posição defende que o aborto do feto anencefálico seria punível, já que o feto, desde a concepção, tornou-se titular de direitos de humanidade. Entende, ainda, que a legalização do aborto nestes casos abriria precedentes para o aborto eugenésico [65], o que não poderia ser tolerado.

Esta corrente é principalmente defendida por religiosos e encontra respaldo nas discussões levadas a termo pela Igreja Católica através da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, razão pela qual um dos argumentos suscitados é a existência de mandamento bíblico que proíbe a matança de qualquer ente humano ("não matarás").

A condição em que se encontra o ser humano não importa: se ele está doente, se está em fim de vida, se gostamos dele, se sua existência nos faz sofrer, tudo isso é secundário em relação ao direito primário a vida. Fetos e bebês anencéfalos são seres vivos, são seres humanos: e esta convicção tem inquestionável base científica. Portanto, devem ser respeitados como seres humanos [66].

Este entendimento preleciona ser inaplicável aos fetos portadores de anencefalia o conceito de morte encefálica. Afirmam seus defensores que "o feto anencéfalo manifesta sinais vitais no ventre materno e morre algum tempo depois" [67] do parto. Estes sinais vitais, portanto, excluiriam o diagnóstico de morte encefálica.

O fato citado de que o anencéfalo apresenta sinais vitais é correto, já que em alguns casos o tronco cerebral, que é responsável pelas funções vitais do organismo humano, não é lesado pela anencefalia, ou é lesado somente parcialmente, mantendo, principalmente, a função da respiração. No entanto, tal não é uma característica absoluta.

Ainda, o argumento utilizado pelo promotor Victor Santos Queiroz, defensor desta corrente, é o de que o diagnóstico de morte encefálica pressupõe a existência de vida e que o feto, efetivamente, nasceria vivo, em razão da respiração. Adquiriria, assim, todos os direitos de humanidade e todos os direitos de relação. Em conseqüência disso, qualquer tipo de atentado contra o feto seria um atentado contra a vida e, portanto, um aborto, pois que violado o mais importante direito do feto [68].

No entanto, o promotor parece não levar em consideração a existência de dois tipos de morte (que já foram objeto de exposição neste trabalho) e o fato de que a morte encefálica exclui a necessidade de declaração da morte biológica. Assim, mesmo que biologicamente vivo, o indivíduo já está morto encefalicamente para todos os fins de direito.

Desta forma, mostra-se frágil o argumento utilizado pelo promotor de que, simplesmente em razão da declaração do Conselho Federal de Medicina, de que o feto anencefálico morre clinicamente, ainda na primeira semana de vida, o diagnóstico de morte encefálica deveria ser excluído.

Aqueles que entendem que o feto anencefálico não pode ser declarado titular de direitos baseiam-se em dois pontos: na inexistência de vida humana e na ocorrência de morte. A partir de agora, se procederá à análise de cada uma destas doutrinas.

A corrente que entende que o anencéfalo não possui vida humana baseia seu posicionamento no Direito Romano, que negava humanidade àqueles cuja forma não fosse correspondente à forma humana. O Direito Romano entendia que estes seres eram resultado da cópula entre uma mulher e um ser irracional, do que resultava um ser inumano ou híbrido [69]. Com o avanço da ciência, entretanto, verificou-se que esta hipótese é impossível, já que o coito de mulher com um irracional é improfícuo.

Para corroborar o entendimento romano, os defensores desta corrente utilizam como argumento o fato de os dicionários da língua portuguesa definirem anencefalia como uma monstruosidade. Sendo um monstro, seria lógico afirmar que o feto anencefálico não poderia ser pessoa.

Este entendimento preleciona que a existência ou não de um ser humano é determinada pela cabeça: qualquer ser que não possuir uma cabeça igual à cabeça dos demais seres humanos não pode ser considerado um humano, pois destoa do padrão da espécie.

O vocábulo cabeça, acima citado, possui duas significações. A primeira delas é a de cabeça como parte do corpo humano. Efetivamente, ao olhar para um feto anencefálico se percebe que ele não possui uma cabeça igual à dos demais seres humanos, já que não é arredondada, mas apresenta uma profunda depressão na parte superior.

A segunda acepção pode ser entendida como ausência de racionalidade. De fato, um feto anencefálico não pode relacionar-se consigo e nem com os outros seres, não pode pensar, sentir ou exercer qualquer função que seja típica de um ser humano e que o diferencie dos demais seres irracionais com os quais convive: ele não possui razão. Isso porque a porção cerebral responsável pela realização destas funções de relação e de racionalidade é inexistente nestes fetos. Essa parte é justamente o córtex cerebral, a parte mais externa do cérebro [70].

Que é este ser vivo anencefálico? Parece honesto afirmar que não é um ser da espécie animal pois as características básicas do animal são sentir dor e prazer, impossível num feto anencefálico. Também é difícil classificá-lo como um ser da espécie humana, cuja característica essencial é a possibilidade de pensar, perguntar e tomar decisões. Poderia ser classificado como realidade vegetativa? É coerente deduzir que se trata de realidade inespecífica. Pode ser entendido como ato falho da natureza, que previa produzir um ser humano, mas gerou uma realidade indecifrável: um erro.

Então, impõe-se uma conclusão fundamental: no feto anencefálico não temos uma pessoa [71].

Esta posição é defendida pelo médico legista argentino Juan Carlos Coronel e pelo doutrinador brasileiro Roosevelt Arraes. Inclusive, Arraes chega ao extremo de chamá-lo de "ser vivo disponível", comparando-o a coisa e entendendo que dele possa dispor a genitora como melhor lhe aprouver. À mesma conclusão chega a psicóloga Vera Iaconelli, afirmando que "não há bebê", razão pela qual não ocorreria aborto, baseando seu posicionamento na tese de que a inexistência de cérebro tornaria o feto anencefálico um ser não humano [72].

Não sendo considerado humano, o feto anencefálico não teria direito à proteção estatal, não adquiriria direitos de humanidade e, muito menos, direitos de relacionamento. O feto anencefálico não seria, portanto, titular de direitos, mas sim objeto de direitos. Arraes, no entanto, faz uma ressalva de que os direitos de humanidade [73] somente lhe seriam negados após o diagnóstico da má-formação congênita.

No entendimento jurídico, no entanto, esta posição apresenta contradições e não pode ser aplicada. Em primeiro lugar porque, como já dito anteriormente, é ente humano todo aquele ser que provém da união de gametas humanos, do homem e da mulher, todo aquele ser cuja origem é um zigoto humano. Este ser tem origem idêntica à de qualquer outro ser humano e não se assemelha a nenhum outro exemplar de alguma espécie de ser irracional animado, pelo que não pode pertencer a qualquer outra categoria de seres.

Outrossim, mostra-se conflitante o fato de que um ser seja considerado pessoa pelo Direito e, a partir da verificação de certa hipótese, deixe de sê-lo e perca (ao que parece, de forma retroativa), assim, todos os direitos que antes lhe eram garantidos justamente por pertencer à raça humana. Ainda, ressalte-se que este posicionamento leva em conta não o momento da ocorrência da má-formação, mas sim o momento de seu diagnóstico, para fixar o termo final dos direitos de humanidade. Nestes termos, chegar-se-ia à hipótese absurda de que, após a existência da má-formação e antes de seu diagnóstico, poder-se-ia falar em aborto do feto já portador de anencefalia, mas, tão logo feito o diagnóstico, a conduta, sobre o mesmo feto portador de anencefalia fosse considerada lícita, por representar a livre disposição materna sobre seu próprio corpo e sobre uma coisa que lhe pertence.

Tal hipótese carece de racionalidade.

No sentido de que é o momento da concepção que torna um ser um ente humano ou não, e não qualquer modificação ulterior, tem-se o entendimento do médico Ernesto Beruti:

Al estar privado de calota craneana, hemisférios cerebrales y corteza cerebral no lo relega a la categoria o família de los sub-humanos "… ninguna patologia ulterior a la concepción transforma a la persona em um producto sub-humano …" (Suprema Corte de Justicia de la Nación) [74].

Dentre os que defendem a não concessão ou a concessão parcial (sendo titulares apenas por determinado período) de direitos aos anencéfalos, os favoráveis à idéia de que o feto anencefálico está morto estão em maior vantagem numérica.

O entendimento de que seriam entes mortos é demonstrado com clareza por Samantha Buglione:

(…) para se ter direito à vida é preciso estar vivo; somente é possível proteger a vida havendo vida (…). Um feto anencefálico é um feto vivo? O direito, através da Lei de Transplantes, na qual define que morte é morte cerebral, diz que não. O que temos no caso do feto anencefálico é um organismo que vive. Da mesma forma que um coração que está sendo transplantado vive. Então a pergunta: o direito à vida também existe para fetos que jurídica e tecnicamente estão mortos? Fora do útero um feto nestas condições vive tanto quanto alguém em morte cerebral vive sem os aparelhos [75].

Este entendimento tem ganhado força nos últimos anos no Brasil, principalmente em razão do ajuizamento, em 2004, perante o Supremo Tribunal Federal, de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF.

A ação pretende que o Supremo Tribunal Federal manifeste-se no sentido de não ser punível a conduta da mãe e da equipe médica em caso de antecipação do parto de um anencéfalo. Entendem, inclusive, que nestas hipóteses não haveria aborto, mas sim uma antecipação terapêutica do parto [76], já que o feto anencefálico não estaria vivo.

A liminar, no processo, foi deferida pelo Ministro Marco Aurélio de Melo. No entanto, após quatro meses, foi revogada pela Corte Superior. Vale ressaltar, por oportuno que na liminar não foram analisadas questões relativas ao mérito, mas, apenas, foi ressaltado que estaria inocorrente o periculum in mora e, assim, careceria a liminar dos requisitos para ser concedida [77]. O Direito brasileiro, desta forma, ainda não tem posição esposada pelas instâncias superiores com relação à matéria [78].

Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, professor aposentado da cadeira de Direito Penal, manifestou-se no sentido de que, de fato, não haveria aborto, pois que inexistente tipicidade em razão da falta de objeto jurídico, da falta de sujeito passivo próprio e da falta de objeto material. E arremata: "o fato não é mais do que um quase-crime, na modalidade de crime impossível" (sem grifos no original) [79].

De fato, quando são rememoradas as lições de Direito Penal, aprendidas logo nas primeiras cadeiras do Curso de Direito, percebe-se que foi ensinado que seria crime impossível matar um ser humano, que já estivesse morto, em razão de outra circunstância (nexo causal). Da mesma forma, não seria praticado aborto se o feto já estivesse morto. Nestes casos, ressalte-se, sempre foi levado em conta somente o conceito de morte clínica ou biológica.

Esta lição pode ser aplicada de forma análoga ao caso do feto anencefálico, pois que a vida nele não mais existiria, em razão da inexistência de atividade cerebral. Assim, impunível o atentado contra o ser dentro do ventre materno, mesmo que seu sangue ainda estivesse fluindo, pois que a vida já lhe teria abandonado [80].

No entanto, os defensores desta teoria divergem quanto ao fundamento da morte. Alguns defendem que o feto estaria morto por poder a ele ser aplicado o conceito de morte encefálica. Outros, no entanto, entendem que a situação é análoga à da morte encefálica, mas que seria conceitualmente equivocada a afirmação de que o feto anencefálico seria um morto encefálico.

Os que se filiam à corrente da existência da morte encefálica usam como argumento principal o fato de que o Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n° 1.752, de 13 de setembro de 2004 [81], afirmou que os anencéfalos seriam "natimortos cerebrais". Em verdade, ao que parece, o Conselho Federal de Medicina, embora entenda que os anencéfalos já estão mortos dentro do útero materno, sendo desnecessária a declaração de morte clínica, não os classifica como mortos encefálicos. Sobre o assunto, no entanto, o mesmo será tratado quando for relatado o posicionamento da equiparação das situações de morte encefálica e do anencéfalo.

Ao que tudo indica, no entanto, esta posição resta equivocada, embora seus efeitos não sofram qualquer variação.

Com efeito, está com a razão a doutrina defendida pela Igreja Católica e pelos mais conservadores de que o conceito de morte encefálica não possa ser estendido a fetos portadores de anencefalia.

Ora, para que um ser seja declarado morto encefálico é necessário que alguns requisitos sejam observados. Dentre eles, o feto deve ter nascido e completado, no mínimo, sete dias de vida extra-uterina. Ora, no caso do anencéfalo, o cumprimento deste requisito é impossível na quase totalidade dos casos. Isso porque mais da metade morre clinicamente ainda dentro do útero materno e os que sobrevivem ao parto morrem clinicamente logo após este evento, não suportando mais do que alguns minutos fora do ventre materno [82].

Outrossim, mesmo que se desconsiderasse esse fato, ainda assim não seria possível tal declaração ainda no ventre materno, a fim de se dizer que os direitos não teriam remanescido, pois que dentro do útero não é possível a realização dos exames necessários e determinados pela Resolução do Conselho Federal de Medicina.

Ora, inviável a realização no feto (ou seja, intra-útero) de testes de apnéia e de verificação da atividade supra-espinhal – testes estes indispensáveis à declaração de morte encefálica – e dos testes de ausência de atividade elétrica cerebral, de atividade metabólica cerebral ou de perfusão sanguínea cerebral – testes de caráter complementar, mas que precisam ser realizados antes da declaração final de morte encefálica.

Ainda, o anencéfalo apresenta, em alguns casos – principalmente naqueles em que nasce com vida clínica – lesões totais apenas no cérebro, sendo que o cerebelo e, principalmente, o tronco cerebral, funcionam normalmente ou, ao menos, mantém um mínimo de atividade. Ora, para a declaração de morte encefálica é necessário que todo o encéfalo fique irreversivelmente lesionado, e não somente a sua parte principal – o cérebro.

Outrossim, importante ressaltar que para a declaração de morte encefálica é indispensável à ausência de capacidade de respiração sem o auxílio de respiradores mecânicos, o que ratifica a necessidade de lesão total de todo o encéfalo. No entanto, em alguns casos, dependentes do grau de lesão do tronco cerebral pela anencefalia, os fetos portadores desta anomalia são capazes de respirar sem o auxílio de qualquer tipo de aparelho.

Por derradeiro, interessante perceber que a morte encefálica pressupõe a existência anterior de uma vida encefálica, pois que com os exames a serem realizados se perquiri a cessação das funções que antes eram realizadas de forma automática pelo encéfalo e que, em virtude de uma causa conhecida, deixaram de ser realizadas definitiva e irremediavelmente pelo encéfalo.

Diante do que foi dito acima, é possível perceber que um anencéfalo não pode ser declarado morto encefálico.

No entanto, sua situação mostra-se análoga à de qualquer indivíduo com morte encefálica, se mostrando dispensável a realização dos exames determinados pelo Conselho Federal de Medicina para que se saiba que o anencéfalo não possui atividade supra-espinhal.

(…) a ordem jurídica brasileira estabelece que a morte de alguém é quando existe a chamada morte encefálica. Ora, se a ordem jurídica está admitindo que com a morte encefálica pode haver transplante, é porque não há mais vida. O que se dizer de um feto que nem chegou a ter o encéfalo? Pior ainda. Se não chegou a ter o encéfalo, então como é que se pode imputar a vida deste feto? [83]

Ora, os reflexos que o anencéfalo pode vir a apresentar [84] são decorrentes de atividade infra-espinhal, já que os nervos do corpo são perfeitos e corretamente ligados ao cerebelo (que, lembre-se, pode não sofrer danos decorrentes da anencefalia). Assim, percebe-se que os reflexos apresentados pelo anencéfalo são os reflexos infra-espinhais que são descritos pelo item E I do anexo da Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina [85].

No entanto, este feto não pode decodificar, identificar os estímulos que recebe e os reflexos que apresenta, já que seu cérebro – o responsável por esta função – simplesmente inexiste em sua caixa craniana [86].

Além disso, é possível comparar as situações, uma vez que a anencefalia, da mesma forma que a morte encefálica, é resultante de um processo irreversível [87], de causa conhecida e que retira de seu portador qualquer chance de sobrevida – todos estes requisitos indispensáveis para a declaração de morte encefálica.

Na verdade, os exames que a Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina determina que obrigatoriamente sejam realizados para que possa ser uma pessoa declarada morta encefálica são indispensáveis somente para demonstrar a irreversibilidade do dano encefálico. No caso do anencéfalo, no entanto, não é preciso a realização de qualquer tipo de exame complementar à ultrassonografia, que detecta ocorrência da anomalia. O cérebro não existe, não pode realizar qualquer tipo de função e não há qualquer possibilidade de que venha a exercer suas funções corretamente [88].

Desta forma, parece que convém denominar o anencéfalo de morto cerebral, e não de morto encefálico, já que não possui, necessariamente, a totalidade de seu encéfalo comprometido pela má-formação. Deve-se, assim, utilizar a nomenclatura adotada pelo Conselho Federal de Medicina na Resolução 1.752/04 (natimorto cerebral), mesmo que nesta o Conselho a tenha utilizado inadequadamente e como sinônima de morte encefálica [89].

No entanto, esta expressão deve ser utilizada em razão da necessidade de rigorismo técnico no momento da utilização de termos técnicos e para a sua correta interpretação. Isso porque, quer se utilize uma ou outra expressão, embora as causas e os diagnósticos sejam distintos, os efeitos serão rigorosamente os mesmos: a conceituação do anencéfalo como um ser morto e incapaz de receber a proteção do Estado da mesma forma da proteção dispensada a um feto vivo.

Assim, mesmo que venha a sobreviver clinicamente dentro do útero materno e venha a respirar logo após o parto, o feto anencefálico está morto, não em razão de morte encefálica, mas por estar em situação análoga a dos mortos encefálicos – por ser um morto cerebral –, já que o anencéfalo, mesmo não podendo ser objeto dos exames determinados pela legislação aplicável à morte encefálica, possui atividades cerebrais com as mesmas características das atividades apresentadas pelo morto encefálico: nulas.

A afirmação de ser o feto anencefálico um feto morto não implica em dizer-se que este feto não possui direitos.

Em verdade, o feto anencefálico adquire direitos de humanidade no momento da concepção e os perde justamente quando o tubo neural sofre a má-formação e não se fecha completamente. Vale dizer: há a perda dos direitos de humanidade adquiridos com a concepção no momento que a má-formação que acarreta a morte do indivíduo ocorre. Isso se dá entre o vigésimo quarto e vigésimo quinto dia após a concepção.

Disso resulta que os direitos de humanidade são gozados pelo feto anencefálico por um período muito curto, como curta é a sua existência. Depois da falha de fechamento do tubo neural não há mais nada que possa ser feito pela Medicina para corrigir o defeito e não há possibilidade alguma de criação posterior de tecido cerebral, dos hemisférios cerebrais e do córtex.

Assim, nenhum direito pode ser adquirido pelo anencéfalo depois deste evento. E isto independe de ter ocorrido, ou não, nascimento deste feto e, em caso de nascimento, de ter ocorrido respiração, troca de gases com o meio ambiente. O feto anencefálico já está, ao tempo do nascimento, cerebralmente morto, em condição análoga à do morto encefálico, pois que o evento que ocasionou a morte e a ausência de parte do encéfalo já ocorreu e é irreversível.

Disso resulta que este feto, se não morrer clinicamente antes do parto e se vier a respirar após este evento, não irá adquirir nenhum tipo de direito de relacionamento, ou seja, não irá adquirir patrimônio nem ser titular de obrigações.

Assim, não poderá, ainda no interior do ventre materno, ao contrário do que ocorre com os fetos normais, ser instituído legatário ou herdeiro, pois que tais instituições pressupõem a existência de um indivíduo com potencial de vida, sendo nula quando feitas em favor de mortos. E esta é, precisamente, a situação dos fetos anencefálicos. O feto anencefálico não tem potencial de vida: a vida já o abandonou e, exceto por intermédio de um milagre, não irá retornar ao seu corpo.

Não se trata de afirmação no sentido de que o feto, após a ocorrência da má-formação, passe o anencéfalo a ser coisa, objeto de direitos. Na realidade, ele deixou de ser um ente humano, perdeu a personalidade que possuía em razão do evento morte, nos termos do art. 6° do Código Civil.

A partir do momento em que ocorre a má-formação o anencéfalo deixa de ser protegido pelo Direito como um ente vivo, mas continua merecendo a proteção estatal, agora não mais como feto ou bebê vivo, mas como morto, tendo direito à imagem, ao cadáver, ao nome, à sepultura, etc.

Mesmo havendo sido extinta a personalidade jurídica da pessoa natural pela sua morte (…), o sistema jurídico se ocupa em regular algumas hipóteses, que se caracterizam como proteções diretas ou indiretas de quem não é mais ou nunca chegou a ser sujeito de direito, porque não adquiriu personalidade (natimorto) ou já a perdeu (morto, pessoa jurídica extinta). São meios de proteção direta de quem não tem personalidade jurídica, v.g., dar nome e sepultura ao natimorto. São meios de proteção indireta, por exemplo, o uso do nome do falecido, a publicação de seus segredos [90].

Deve a doutrina civilista, portanto, rever o posicionamento que considera vivo todo aquele que respira fora do útero materno: o anencéfalo é uma exceção a esta regra.

Do que acima foi dito resulta uma conseqüência muito importante. O feto portador de anencefalia não deve ser registrado como um feto nascido vivo, tornando necessário o registro de nascimento e o registro de óbito [91]. O feto anencefálico deve, isto sim, ser registrado no livro de natimortos [92], mesmo que venha a respirar após o parto. Deve ele ser objeto de apenas um único Registro Público.

Ora, os Registros Públicos são necessários para a concessão de direitos de relação ao indivíduo, para que se saiba com clareza o momento em que foi adquirida a personalidade plena do ser humano.

É inegável que os direitos da personalidade, que incluem os direitos de humanidade e os direitos de relação, são adquiridos independentemente de formalidades legais, bastando a simples presença dos requisitos elencados pela legislação. No entanto, sem a certidão de nascimento, a um indivíduo, mesmo adulto, não serão reconhecidos esses direitos. Vale dizer, portanto, que a certidão de nascimento foi a forma que o Estado encontrou para exteriorizar que um indivíduo cumpriu, no momento do parto, os requisitos indispensáveis para a aquisição dos direitos de relação.

Disso resulta que, enquanto for efetuado duplo registro do anencéfalo, ele vai continuar a ser identificado como um feto vivo, recebendo todos os direitos de relação. E isto se dará contra legem, já que o anencéfalo nunca possuirá esta capacidade plena, pois que já nasce morto (cerebralmente), ainda que venha a respirar após o parto.

Deve, assim, a Lei dos Registros Públicos [93] ser interpretada de forma a absorver a modificação dos conceitos de morte e não mais ser permitida a registração do anencéfalo como feto nascido vivo [94].

Ressalta-se, por oportuno, e para que não se incorra em erro, que o motivo pelo qual se entende que os direitos de humanidade devam ser desprezados com relação ao anencéfalo decorre não do fato de que a vida extra-uterina lhe é inviável, não havendo porque, p. ex., seu direito à vida ser protegido [95]. A viabilidade fetal, como já foi tratado neste trabalho, é um requisito que foi abandonado pelo sistema jurídico brasileiro e não pode ser utilizado pelo Direito, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, este último que assiste ao anencéfalo desde a concepção.

Este entendimento, na realidade, é resultante da situação de que o feto portador de anencefalia é um feto morto, com diagnóstico de morte cerebral, sendo sua situação comparada à do morto encefálico.

CONCLUSÃO

Restaram discutidos, no presente trabalho, os critérios e o momento para a aquisição de direitos por um indivíduo, ficando, principalmente, estabelecido que os direitos de humanidade, aqueles decorrentes da natureza humana do ser, são adquiridos desde a concepção e independem da satisfação de qualquer outro requisito. São exemplos destes direitos a vida, a saúde e o nome.

Os direitos de relação, direitos estes que garantem ao indivíduo vantagens sobre outros (são eles os direitos patrimoniais e os direitos obrigacionais). No entanto, somente são adquiridos no momento do parto e sob a condição de que o feto nasça vivo, sendo esta vida representada pela respiração.

Contudo, a regra da respiração como sinônimo de vida apresenta uma exceção, quando o feto, mesmo respirando, está morto na acepção cerebral, mesmo que seu corpo esteja realizando as funções vitais sem interferência ou necessidade de aparelhos.

E isso justamente porque a Medicina e o Direito não mais adotam o critério de morte clínica ou biológica como definidor de morte, mas sim o critério de morte encefálica, situação na qual todo o encéfalo deixa de exercer suas funções de forma definitiva.

O feto portador de anencefalia apresenta situação análoga à do morto encefálico – embora não se possa dizer que ele é um feto com morte encefálica –, podendo-se dizer que a má - formação deste feto resulta no diagnóstico de morte cerebral (no dizer do Conselho Federal de Medicina, o feto portador de anencefalia é um "natimorto cerebral").

As situações de morte cerebral e de morte encefálica decorrem de situações diversas e não podem ser vistas como sinônimas, pois que as partes do corpo lesadas são distintas. Entretanto, apresentam o mesmo efeito, que é justamente a morte do indivíduo em razão de causa conhecida e da irreversibilidade do quadro.

Assim, mesmo que respire fora do útero materno, o feto anencéfalo somente adquire os direitos de humanidade, já que pertence à espécie humana, não lhe assistindo qualquer tipo de direitos de relação. Desta forma, o anencéfalo não pode herdar, ser titular de patrimônio ou em seu nome ser contraído qualquer tipo de obrigação (ressalte-se que isto mesmo que venha a respirar).

Disso resulta que as normas registrais brasileiras devem ser alteradas, a fim de possibilitar que o feto portador de anencefalia, em caso de respiração após o parto, seja registrado apenas uma vez, como natimorto, prescindindo, assim, de dois registros, um de nascimento e outro de óbito. Tal deverá ocorrer a partir da modificação do art. 53, §2° da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73).

Isso porque é o Registro Público de nascimento que demonstra que o indivíduo adquiriu os direitos de relação. Enquanto esta modificação não ocorrer estar-se-á, equivocadamente, premiando bebês incapazes e sem personalidade com direitos que somente deveriam assistir a pessoas vivas.

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NOTAS

01 "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

02 Dados apresentados por CANTARINO, Carolina. Mulher ou sociedade: quem decide sobre o aborto. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2005.

03 Para este estudo, como o tema sugere, somente deteremos-nos à análise da pessoa natural e dos direitos e deveres a ela outorgados pelo Direito Natural e pelo Direito Positivado. Assim, o vocábulo pessoa será empregado neste trabalho somente como sinônimo de pessoa natural, de indivíduo.

04 NERY JÚNIOR, Nélson & NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. 2. ed., p. 146.

05 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Parte Geral, vol. 1, p. 64.

06 Como exemplos é possível citar os Códigos Civis de Portugal, Espanha (que exigia vida autônoma por, no mínimo, 24h), França e Holanda. Tais exemplos são citados em DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 1, p. 179.

07 Washington de Barros Monteiro (in Curso de Direito Civil – Parte Geral, vol. 1, p. 66) afirmou que o feto possui "expectativa de vida humana" (sic). Parece-nos, no entanto, que o ilustre doutrinador foi infeliz na escolha desta expressão, já que, independentemente do momento em que se entende iniciada a vida, é certo que o feto, já antes do seu nascimento, é um ser humano, não podendo ser confundido com qualquer outra espécie ou família de seres, como os vegetais, p.ex.

08 "Uma coisa é indiscutível: desde o zigoto, o que se tem é vida, diferente do espermatozóide e do óvulo; vida diferente do pai e da mãe, mas vida humana, se pai e mãe são humanos. Pré-embrionária no início, embrionária, após, mas vida humana. Em suma, desde a concepção há vida humana nascente, a ser tutelada". FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Fabris: Porto Alegre, 1991. p. 47. In: MIOTTO, Amida Bergamini. O direito à vida. Desde que momento? Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005.

09 Esta forma de abortamento é levada a efeito para melhorar a qualidade da raça e/ou para extirpar defeitos congênitos ou hereditários do ser humano. Foi amplamente utilizado pelos nazistas.

10 Nascituro é o feto que está por nascer. Pode estar no útero materno ou já em seu exterior, mas ainda ligado à mãe pelo cordão umbilical.

11 "No suporte fático da regra jurídica Nasciturus pro iam nato habetur, não há inversão de elementos; a eficácia é que se antecipa: antes do suporte fático da pessoa se completar, atribuem-se efeitos ao que é suporte fático de agora, portanto incompleto para a eficácia da personalização. Seria desacertado só se reconhecerem todos os efeitos após o nascimento, como desacertado seria admiti-los todos desde já" MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. In: DINIZ, Débora & RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. p. 171.

12 Personalidade. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005.

13 MONTEIRO, op. cit., vol. 1, p. 64.

14 Ibid, p. 64.

15 Ibid, p. 64.

16 Fixação do ovo (óvulo fecundado pelo espermatozóide) no útero materno.

17 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. 3. ed. pp. 161/162.

18 NERY JÚNIOR & NERY, op.cit., p. 146.

19 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18. ed. p. 144.

20 ARRAES, Roosevelt. A extensão dos direitos da personalidade e a situação jurídica do anencéfalo. Disponível em . Acesso em: 29. set. 2005.

21 NERY JÚNIOR & NERY, op.cit., p. 157. O Código Civil os qualifica como direitos da personalidade (Livro I, Título I, Capítulo II). No entanto, parece mais apropriada, para evitar confusões conceituais, a utilização da expressão direitos de humanidade (ou mesmo de direitos personalíssimos) ao invés de direitos da personalidade, até mesmo porque defendemos o posicionamento de que os "direitos da personalidade" (sic) sugeridos pelo art. 2° do Diploma Civil não são os mesmos disciplinados pelo art. 11 e ss. do mesmo diploma legal.

22 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 1, 20. ed., p. 120.

23 Como dito anteriormente, alguns acreditam que somente se pode falar em ser humano após a nidação ou após a formação, no feto, do tecido nervoso.

24 Diaulas Costa Ribeiro expressa, no entanto, entendimento que a proteção penal não seria dispensada à vida intra-uterina, mas sim à expectativa de vida extra-uterina: "(…) a vida intra-uterina tem proteção jurídica virtual, ou seja, o Direito Penal, ao punir o aborto, está, efetivamente, punindo a frustração de uma expectativa, a expectativa potencial de surgimento de uma pessoa. Por essa razão, o crime de aborto é contra uma futura pessoa – nesse ponto reside a sua virtualidade –, não porque o Código Penal teria atribuído o status de pessoa ao feto (…), mas porque o feto contém a energia genética potencial para, em um futuro próximo, constituir uma realidade jurídica distinta de seus pais, o que ocorrerá se for cumprido o tempo natural de maturação fetal e se o parto ocorrer com sucesso" Antecipação terapêutica do parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil in DINIZ & RIBEIRO, op.cit., p. 98. No entanto, como já tratado neste trabalho, o feto, desde a concepção, já é uma realidade física e jurídica distinta de seus pais. Entender o contrário seria dizer que até o parto o nascituro poderia ser entendido como coisa ou como parte do corpo materno, sendo este último entendimento desde há muito abandonado pelo Direito. Em realidade, parece que o promotor, para justificar a possibilidade de antecipação terapêutica do parto, acaba por desconsiderar o novo ser – distinto de seus genitores – que habita o útero materno.

25 DINIZ, op.cit., p. 180.

26 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins: o caso Marion Ploch. Disponível em: . Acesso em: 10. jun. 2005.

27 Exceção feita a Sílvio Venosa, que afirma: "Modernamente, a morte será diagnosticada com a paralisação da atividade cerebral, circulatória e respiratória". Direito Civil – Parte Geral, 3. ed. p. 196.

28 ALBERNAZ, Pedro Luiz Mangabeira. Judaísmo e temas polêmicos: doar órgãos: mais do que um ato de amor, uma Mitzvá. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2005.

29 Neste sentido ver: DEFINIÇÃO de morte, A. Boa saúde. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2005; ALBERNAZ, op. cit.

30 CRITÉRIOS de vida e de morte. Boa Saúde. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2005.

31 Tal nomenclatura é equivocada, já que encéfalo e cérebro representam estruturas corporais diversas, conforme se verá a seguir (fazendo a diferenciação destas estruturas ver FRANÇA, Genival Veloso de. Um conceito ético de morte. Disponível em: <>. Acesso em: 19 set. 2005.). Assim, usaremos somente a expressão morte encefálica. Ao final deste trabalho iremos utilizar a expressão morte cerebral no sentido de lesão exclusiva do cérebro, razão pela qual não se deve incorrer em erro ao utilizar as expressões como sinônimas, sob pena de confusão de conceitos e problemas na interpretação deste trabalho.

32 "Comitê Ad Hoc da Faculdade de Medicina de Harvard para Examinar a Definição de Morte Cerebral", conhecido também como "Comitê sobre a Morte Cerebral de Harvard".

33 O Comitê publicou, ainda em 1968, no Journal of American Medical Association as razões pelas quais seria necessária a definição deste novo critério de morte: "Nosso principal objetivo é definir o coma irreversível como um novo critério de morte. Há duas razões pelas quais é necessário uma definição. Primeiro, os avanços nos métodos de ressuscitação e manutenção da vida têm resultado esforços cada vez maiores para salvar aqueles que sofrem de lesões graves. Às vezes estes esforços têm somente um êxito parcial, e o resultado é um indivíduo cujo coração continua batendo, porém o cérebro está irreversivelmente danificado. A carga que se impõe aos pacientes que sofrem a perda permanente do intelecto, para suas famílias, para os hospitais e para aqueles que necessitam de camas hospitalares que ocupam estes pacientes em coma é grave. Segundo, os critérios obsoletos para definir a morte podem causar controvérsias na hora de conseguir órgãos para transplantes". Citado em CRITÉRIOS, op. cit.

34 Com exceção do Japão.

35 O outro componente do sistema nervoso central (SNC) é a medula espinhal. Formando o SN periférico estão, citando de forma bastante simplificada, os nervos e os músculos. In: CHUDLER, Eric. Aventuras em neuroanatomia: as divisões do Sistema Nervoso. Disponível em: <>. Acesso em: 29 set. 2005.

36 CHUDLER, op. cit.

37 A Resolução expressamente exclui a hipotermia e o uso de drogas depressoras do Sistema Nervoso Central como causas para a morte encefálica, conforme se verifica no Termo de Declaração de Morte Encefálica, a ser preenchido pelos médicos responsáveis pela declaração da morte e que consta como anexo à Resolução.

38 No entanto, é o encéfalo que os decodifica e faz com que o indivíduo possa identificá-los.

39 Também conhecido como estado vegetativo.

40 Lembre-se que a apnéia é um dos parâmetros clínicos para a caracterização da morte encefálica, nos termos do art. 4° da Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina

41 A ausência de respiração mecânica por tal período seria capaz de aumentar os níveis de concentração de dióxido de carbono no sangue arterial. Alcançando-se certo nível deste gás no sangue e estando o centro respiratório com sua vitalidade preservada, o diafragma voltaria a movimentar-se, ainda que por curto período.

42 COIMBRA, Cícero Galli. Apnéia na morte encefálica. Disponível em:. Acesso em: 28. jul. 2005.

43 VALLS, Álvaro L. M. Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico. Disponível em . Acesso em: 19 set. 2005.

44 ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do Direito Penal. Conferência realizada no dia 07 de março de 2002, no encerramento do Congresso de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2005.

45 Mesmo não havendo qualquer tipo de definição jurídica do que possa ser entendido como vida o ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, positivou o conceito de morte, o que implica em grande avanço para o Direito, em especial o Biodireito.

46 Como na anencefalia, como se verá adiante. Em verdade, há uma situação contraditória em nosso ordenamento jurídico: enquanto o conceito de morte encefálica é utilizado apenas para a permissão para a retirada de órgãos para transplante, o conceito de morte clínica é utilizado para a tipificação dos delitos contra a vida. Esta é uma contradição que precisa, urgentemente, ser sanada, já que o bem jurídico defendido em ambos os casos é o mesmo: a vida.

47 Que se manifesta somente no indivíduo já completamente formado.

48 Explicação completa a respeito das características do anencéfalo é possível encontrar em: FREITAS, Ana Clélia de. et al. Existe aborto de anencéfalos? DireitoNet, São Paulo, 18 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005; CORONEL, Juan Carlos. Interrupción del embarazo em la anencefalia y la violación. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2005; e MARTÍNEZ, Roberto Cassís. Evaluación ecografica del sistema nervioso central del feto. Disponível em: <>. Acesso em: 31 ago. 2005.

49 BERUTI, Ernesto. Anencefalia (una visión médica y ética). Disponível em:. Acesso em: "Até o final da terceira semana de desenvolvimento, o embrião tem a forma de um disco plano. No meio de sua parte dorsal se origina a placa neural, conjunto celular que, no período ao qual aludimos, inicial um processo de formação de pregas, de invaginação, que continua com a elevação progressiva de suas bordas, até que se juntem, transformando-se em um canal que, após sucessivas etapas, vai se fechando até formar um tubo totalmente fechado, longitudinal de acordo com a forma do embrião. Uma semana após, o tubo neural apresenta uma região caudal mais fina, que dá origem à medula espinhal e a três vesículas cerebrais, maiores, localizadas na parte anterior, e que darão origem ao encéfalo ou cérebro (sic). A partir da quarta semana se algum destes grupos celulares sofre danos por agentes patológicos, podem produzir-se dois efeitos opostos: ou o embrião morre ou, se sobreviver, o dano deverá ser definitivo, impedindo o fechamento total do tubo neural local e fator anatômico desencadeante do processo de anencefalia".

50 FREITAS, op. cit.

51 Para um melhor entendimento das causas que podem provocar defeitos congênitos ligados ao tubo neural ver MARTÍNEZ, Roberto Cassís. Evaluación ecografica del sistema nervioso central del feto. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2005.

52 Sobre a definição destas estruturas encefálicas ver o item 2.2.

53 RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil. In DINIZ, Débora & RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. p. 101.

54 CORONEL, op.cit.

55 Dados apresentados pelo editorial da Folha de São Paulo de 03/07/04 e transcritos por SANEMATSU, Marisa. Interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal: a cobertura da imprensa sobre a liminar do STF e suas repercussões. Disponível em: . Roberto Cassís Martinez apresenta a proporção de 1,4 para cada mil gestações avaliadas sem seleção e Marcelo Medeiros (Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam? in ANIS. Anencefalia: o pensamento jurídico em sua pluralidade. p. 21) aponta a proporção de nove para cada dez mil gestações levadas a termo.

56 Alguns médicos afirmam que a gestação de um anencéfalo não traria riscos maiores à gestante do que uma gestação de um feto normal. Este, no entanto, não é o entendimento da FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.

57 Isso porque a gestante não teria a dilatação necessária para o parto normal.

58 A pressão arterial tende a aumentar com a gestação. No entanto, em caso de gestações de fetos anencefálicos, a pressão seria ainda maior do que a apresentada em uma gestação normal.

59 Já que o feto anencefálico não se alimenta deste líquido, como ocorre com os fetos normais, em razão de suas dificuldade em deglutir e sugar.

60 FREITAS, Ana Clélia de. et al. Existe aborto de anencéfalos? DireitoNet, São Paulo, 18 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005.

61 Diaulas Costa Ribeiro apresenta o percentual de 65% (sessenta e cinco por cento) como representativo de óbitos intra-uterinos de fetos portadores de anencefalia.

62 ANIS. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. p. 94.

63Ibid., p. 94.

64 Como defensora desta corrente encontramos, por exemplo, a Drª. Amida Bergamini Miotto, juspenitencialista, professora de criminologia e de vitimologia e o Dr. Ernesto Berutti, médico.

65 Sobre a conceituação deste tipo de abortamento ver nota 7, supra.

66 Dom Odilo Pedro Sherer, secretário geral da conferência Nacional dos Bispos do Brasil, in ANIS. op. cit. p. 45.

67 AGNELO, Geraldo Majella. Pela vida do feto. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2005.

68 QUEIROZ, Victor Santos. Reflexões acerca da equiparação da anencefalia à morte encefálica como justificativa para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Jus Navegandi, Teresina, a. 9, n. 760, 3 ago. 2005. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2005.

69 Neste sentido manifesta-se Roosevelt Arraes (ARRAES, Roosevelt. A extensão dos direitos da personalidade e a situação jurídica do anencéfalo. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005) e o advogado Sérgio Frederico (DIÁRIO DE ASSIS, 18 dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2005).

70 CHUDLER, op. cit.

71 PEGORARO, Olinto. O feto sem cérebro, a medicina e a ética. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2005.

72 A idéia que emana da leitura do artigo O aborto Seletivo no Brasil, de autoria de Débora Diniz, é a de que a autora comunga desta opinião. Assim afirma: "primeiramente, a referência à anencefalia é soberana sob outras patologias por seu caráter clínico extremo: a ausência dos hemisférios cerebrais. Mas esta, acredito, não é a razão suficiente para fazer dos fetos portadores de anencefalia a metáfora do movimento em prol da legitimação do aborto seletivo no país. A ausência dos hemisférios cerebrais, ou, no linguajar comum, ‘a ausência de cérebro’, torna o feto anencéfalo a representação do subhumano por excelência. Os subhumanos são aqueles que, seguindo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da ‘humanidade’, a cultura dos seres humanos (1989). Os fetos anencefálicos são, assim, alguns dentre os subhumanos – os que não atingiram o patamar mínimo de desenvolvimento biológico exigido para a entrada na humanidade" (sem grifos no original). No entanto, em debate após palestra no Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia, que foi transcrito no livro Anencefalia e Supremo Tribunal Federal (pp. 53/54), a doutrinadora, veementemente, explicita que não entende que os portadores de anencefalia sejam sub-humanos, afirmando que no referido artigo apenas transcreveu as posições esposadas nos alvarás judiciais autorizativos da interrupção terapêutica da gestação.

73 O autor refere-se a direitos da personalidade. Sobre a terminologia ver item 2.1 supra.

74 BERUTI, Ernesto. Anencefalia (una visión médica y ética). Disponível em: . Acesso em: 03. nov. 2005. "Ao estar privado de calota craniana, hemisférios cerebrais e córtex cerebral não se relega (o anencéfalo) à categoria ou família dos sub-humanos ‘… nenhuma patologia posterior à concepção transforma a pessoa em um produto sub-humano…’ (Suprema Corte de Justiça da Nação)"

75 BUGLIONE, Samantha. Em defesa da vida. Disponível em: . Acesso em: 19. set. 2005.

76 Expressão criada por Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro e amplamente utilizada por aqueles que defendem a inocorrência de aborto em casos de má-formação fetal incompatível com a vida extra-uterina. É antecipação do parto porque a gestação termina antes do prazo natural. É terapêutica porque é dirigida a resguardar a integridade física e mental da gestante.

77 A CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, órgão sindical que propôs a ação, e a ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, entidade que deu assessoria à autora da lide, estão confiantes do acolhimento da tese perante o Supremo Tribunal Federal, principalmente porque no Hábeas Corpus 84.025-6/RJ o Tribunal já manifestara a tendência de considerar a retirada provocada do feto anencéfalo do útero materno não um aborto, mas sim uma antecipação terapêutica do parto. Conforme Débora Diniz em O luto das mulheres brasileiras a liminar, enquanto esteve em vigor, possibilitou que mais de cinqüenta mulheres tenham se socorrido do Sistema Único de Saúde e realizado a antecipação terapêutica do parto. É possível, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal não julgue o mérito da lide, sob a alegação de que o meio processual utilizado (ADPF) não seria o adequado para alterar a legislação penal vigente, sendo somente o Poder Legislativo o titular da capacidade de criar e alterar normas em vigor no ordenamento jurídico brasileiro.

78 As instâncias inferiores e o próprio STJ – Superior Tribunal de Justiça têm prolatado decisões contraditórias sobre a matéria, algumas negando e outras reconhecendo os direitos destes fetos. Quando reconhecidos estes direitos, cada prolator, após o cotejamento destes com os direitos da genitora, entende por sua garantia ou por sua violação. Veja-se, como exemplo, o caso do Hábeas Corpus n° 84.025-6/RJ, tramitante perante o Supremo Tribunal Federal, impetrado justamente em razão do grande número de liminares contraditórias desde a primeira instância, e que perdeu seu objeto antes mesmo do inicio do julgamento, justamente em razão do nascimento de Maria Vida, que sobreviveu apenas sete minutos fora do útero materno. Esta via crucis traz profundos prejuízos à genitora e à sua família, principalmente de ordem mental, devendo haver o quanto antes uma determinação no sentido de unificar os provimentos judiciais.

79 ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. Anencefalia e aborto. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2005.

80 A respeito do aborto, alguns doutrinadores penalistas estabelecem, ainda, que a conduta seria penalmente lícita e, portanto, não se falaria em aborto, mas sim antecipação terapêutica do parto, suscitando, para isso, o estado de necessidade. Sobre o assunto ver RIBEIRO, Diaulas Costa. Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil. Artigo presente no livro Aborto por anomalia fetal, p. 93.

81 Ementa: "Autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais".

82 Em razão deste fato alguns doutrinadores chamam a genitora de incubadora, como os aparelhos utilizados para manter a vida clínica (biológica) do morto encefálico, como é o caso da médica Maria Lúcia Penna, do advogado Sérgio Frederico e dos psicólogos Cláudio van Balen e Sérgio Bittencourt.

83 Arx Tourinho, Subprocurador Geral da República in CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. p. 42.

84 Não é sempre que estes reflexos podem ser observados em um feto ou bebê anencefálico. Eles dependem do grau de lesão das demais estruturas encefálicas e da não cumulação de outros defeitos congênitos com a anencefalia, principalmente a espinha bífida.

85 Que dispõe: "Interessa, para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente, a arreatividade supraespinhal. Conseqüentemente, não afasta este diagnóstico a presença de sinais de reatividade infraespinhal (atividade reflexa medular) tais como: reflexos osteotendinosos ("reflexos profundos"), cutâneo-abdominais, cutâneo-plantar em reflexão ou extensão, cremastério superficial ou profundo, ereção peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros inferiores ou superiores, reflexo tônico cervical."

86 "existe uma coisa que se chamam células de sustentação. É como se fossem células que não têm função cognitiva, de função de relação, de transmissão de qualquer coisa. É isso que são os resquícios de encéfalo. O que vocês falaram aí sobre reação, sugação, reação de movimento, isso é uma coisa à parte do cérebro. Isso é burro, isso é tronco cerebral, isso não tem nada a ver.não sente dor. Dor é uma interpretação de uma lesão que vai ser manipulada pelo cérebro, para ser transformado em uma sensação subjetiva.as terminações nervosas que conduzem dor estão lá, mas o cérebro não processa. O feto com anencefalia não sente dor. Não tem nada. Quando alguém sente coceira é a mesma terminação nervosa da dor. Você não interpreta isso como dor, interpreta como coceira. Às vezes até uma sensação agradável". CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA, op.cit., p. 60.

87 Não há cura para a anencefalia, que é letal em cem por cento dos casos. Há somente a prevenção, com a administração de ácido fólico, como visto anteriormente.

88 "Um feto anencefálico não tem córtex cerebral, portanto, é um feto sem atividade cerebral". DINIZ, Débora. O luto das mulheres brasileiras. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2005.

89 O entendimento acerca do erro de nomenclatura, e não de sua utilização proposital, advém da análise do posicionamento do médico Marco Antônio Becker, relator do da referida resolução: "Os conceitos de morte se baseiam em morte encefálica. Os anencéfalos são considerados natimortos" (in BARROS, Hércules. Mais um nó na discussão. Correio Brasiliense, Disponível em: Acesso em: 28 set. 2005). Também, ver artigo publicado em ANIS, op. cit., p. 32.

90 NERY JÚNIOR & NERY, op. cit., p. 146.

91 Livros A (de nascimento) e C (de óbitos), nos termos do disposto na Lei 6.015/73, art. 33.

92 Livro "C Auxiliar".

93 Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que "dispõe sobre os Registros Públicos e dá outras providências".

94 A necessidade de lavratura de certidões de nascimento e de óbito para o anencéfalo é uma grande preocupação daqueles que defendem o abortamento de um feto anencefálico, na medida em que seria grande o sofrimento dos pais ao terem de providenciar a expedição destas duas certidões. A solução esposada neste trabalho, assim, se torna bastante útil, já que permite que se providencie apenas uma certidão, a do parto de natimortos.

95 Não é, portanto, em razão de que "não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê" e de que "o feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou a sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal" (sem grifos no original). Min. Joaquim Barbosa, em voto no Hábeas Corpus 84.025-6/RJ, tramitante perante o Supremo Tribunal Federal que, em razão da perda do objeto da lide, se transformou em pronunciamento.



Referencia

SANTOS, Marília Andrade dos. A aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 982, 10 mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2008.