domingo, 31 de agosto de 2008

Os déspotas da capa preta

por Rodrigo Pedroso*

Apenas um único Ministro, dos onze que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF), ficou para assistir a primeira audiência pública do processo da ADPF 54, ação que reclama o direito de abortar as crianças anencéfalas, com suposto fundamento na Constituição Federal.

Por que os Ministros não ficaram para assistir a audiência? Simplesmente porque já têm definidos os seus votos. Essas audiências públicas não se dirigem aos Ministros, que já formaram opinião sobre o assunto, mas à mídia e, por meio dela, à opinião pública.

Essas audiências públicas são uma farsa para legitimar a usurpação, pelo Supremo Tribunal Federal, dos poderes constituinte e legislativo. O STF não julga questões de fato, apenas questões de direito. Não precisa ser um grande jurista, qualquer advogado de porta de cadeia sabe disso. Por isso não têm sentido a convocação de audiências públicas para discutir aspectos “religiosos”, “científicos”, “filosóficos” ou o raio que os parta.

O que o Supremo tem que decidir é se existe algum preceito fundamental na Constituição que autorize alguém a abortar uma criança com anencefalia. É óbvio que não tem. Por isso, a ADPF 54 já devia ter sido extinta há anos, por falta de amparo constitucional. As audiências públicas servem para legitimar a usurpação, por parte do Supremo Tribunal Federal, do poder constituinte reformador.

No caso da ADPF 54 ser julgada procedente, o STF vai alterar o sentido do texto constitucional e ainda vai dizer que o fez “com amplo respaldo democrático da sociedade civil, que foi ouvida em sucessivas audiências públicas”.

A imagem que certos integrantes do STF querem passar não é apenas a de intérpretes autorizados da Constituição, mas a de intérpretes da vontade popular e dos anseios da “sociedade civil organizada”, substituindo-se ao próprio Congresso Nacional como representantes do “povo soberano”, titular do poder constituinte. É a adesão formal e explícita à politização do Judiciário e ao ativismo judicial, com gravíssima violação da separação constitucional dos poderes.

Para entender o perigo isso representa para as instituições democráticas, basta lembrar de outro órgão do Estado que, no decorrer da história brasileira, reivindicou para si o status de falar e agir em nome do povo soberano. Em 1889, o golpe militar que depôs o Imperador foi justificado pela frase do General Benjamin Constant: “O Exército é o povo fardado”. Desde então, a república brasileira viveu sob a tutela das Forças Armadas, como poder moderador exercido de fato. O chamado “partido fardado”, em 1964, “se investiu no exercício do poder constituinte” e passou a baixar sucessivos atos institucionais. O preâmbulo do Ato Institucional n. 1 bem que poderia ser utilizado pelo Ministro Marco Aurélio, para a redação de seu voto:

“(…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe neste Ato Institucional, resultante do exercício do poder constituinte, inerente a tôdas as revoluções, a sua legitimação.”

Será que viveremos agora sob a tutela dos “homens da capa preta”, os quais não receberam mandato popular? “A pior ditadura que pode existir é o despotismo do Judiciário. Contra ele, não há a quem recorrer” (Rui Barbosa).

***

O jurista Rodrigo Pedroso é membro da Comissão de Defesa da República e Democracia - OAB/SP