segunda-feira, 9 de março de 2009

Estupro não é licença automática para o aborto

Por Roberto Wanderley Nogueira

O arcebispo de Olinda e Recife vem sofrendo críticas – até de parte do presidente da República – por haver condenado a prática oficial de um duplo aborto em maternidade pública da capital pernambucana, feito em uma menor de apenas nove anos de idade, vítima de estupro por parte de seu padrasto. Sobre isso, lembrou Sua Excelência Reverendíssima que os católicos que o fizessem de consciência estariam latae sententiae (independentemente de pronunciamento formal da autoridade religiosa) excomungados pelo Direito Canônico[1], que é o sistema de normas que rege a vida eclesiástica e que encontra nos fundamentos e na tradição da fé católica, objeto de revelação, sua direta substância e vigência prática.

O Código de Direito Canônico vigente, que o sintetiza, foi promulgado pela Constituição Apostólica de Sua Santidade o Papa João Paulo II em 1983, e nela está dito que: “No decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-la à missão salvífica que lhe é confiada”.

Como visto, a atualização das leis eclesiásticas, que reúnem sobretudo um sentido teológico, não implica de modo algum infidelizar a Deus, mas honrá-Lo. Por isto mesmo, resulta da necessidade de garantir uma crescente aproximação da humanidade para com a aliança incessantemente proposta pelo Criador, visando à salvação. Disso decorre que, dentre outros aspectos da cristandade, não há como flexibilizar o patrimônio da vida em todo o seu esplendor desde a concepção, ou seja, desde quando surgiu no mundo e contra o que se opõem as conseqüências do pecado que deságuam na morte.

Deste modo, o decreto de excomunhão de católico (os que não o são ou estão ostensivamente afastados da Igreja, não são excomungáveis) que lança mão de sua liberdade para conspirar de algum modo contra a vida humana é um remédio eclesiástico que faz lembrar a proximidade da morte àquele que sofreu a fraqueza do pecado e a ele se entregou sem resistência eficaz. A Igreja, mediante esse decreto, torna certa e inteiramente visível a misericórdia de Deus, porque não há pecado que seja maior do que a bondade do Altíssimo, razão pela qual pode e deve o pecador, redimindo-se de suas faltas, buscar o perdão em face de sentido arrependimento como tal declarado no Sacramento da Penitência e que se passa a vivenciar daí por diante.

Por outro lado, a laicisação do Estado moderno não exclui o fundamento moral contido na ordem jurídica por ele encerrada (civil). Isto significa que, por maior que seja a inflexão da lei humana sobre os aspectos fundamentais da vida em sociedade (sacralizada pela fé cristã), nela estará sempre presente um núcleo universal do qual ninguém tem o direito natural de afastar-se. E se o fizer sofrerá consequências nefastas, ainda que não haja previsão legal para isso e mesmo que tais consequências somente afetem o interior dos penitentes.

A Constituição brasileira no seu artigo 5º, aliás, protege a vida, incondicionalmente, e não poderia ser diferente, porque qualquer outro sentido para esse preceito resultaria em um conteúdo materialmente impossível diante do fato da civilização. Ali não está escrito, nem induzido, de modo algum, que a vida vale somente após o nascimento. Essa perspectiva tem apenas um sentido de fruição de direitos e obrigações, resultante da personalidade jurídica, enquanto categoria puramente formal.

Com efeito, não incide sobre o conteúdo jurídico da vida humana, enquanto preceito material, a propósito do que a Carta não faz qualquer acepção quanto a tratar-se de vida com ou sem personalidade jurídica (nascida ou intra-uterina). Sobre intra-uterinidade, convém ressaltar que a concepção é mesmo o instante preciso em que a moderna embriologia declara estar presente a vida como núcleo biológico distinto das unidades masculina e feminina que lhe deram substância pela inoculação dos gametas.

Pensando assim, nem mesmo se permite compreender pela constitucionalidade das regras de Direito Penal que apontam para uma suposta justeza moral decorrente das figuras do aborto terapêutico (para salvar a vida da gestante, inexistindo meio diverso para garantir o mesmo) e o resultante de estupro.[2] No primeiro caso, se teria de fazer uma verdadeira “escolha de Sofia” entre vidas igualmente relevantes, porquanto não se pode constitucionalmente estabelecer acepção entre vidas humanas; no segundo, a situação parece ainda mais penosa, porque se trata de uma eleição pela morte do indefeso, refletindo agir demasiado eugênico, tão ou mais desumano como terá sido o estupro que o possibilitara.

Bem por isso, o Direito Penal não exclui a criminogênese e a tipicidade dessas condutas, senão apenas exclui a punibilidade que a elas estaria, noutros termos, recomendada juridicamente. Não sem razão o Direito Canônico insiste na penalização desses atos, tidos como pecados graves, sujeitos à excomunhão latae sententiae. É que o escândalo de que ora se reporta estará sempre revestido de seu caráter moral e teológico que não encontra exaustão na letra da norma codificada de qualquer espécie (civil ou canônica).

Além disso, agrava o acontecimento o fato da rapidez com que se discerniu acerca da interrupção da gravidez da infeliz menor, premida entre a brutalidade de seu padrasto e a indignação de sua mãe, seguida de diversos movimentos organizados, inclusive o governo, que preconizam, absurdamente, a prática do aborto como direito da gestante e como se a vida que ela passa a congregar fosse algo descartável, na ilusão de superar, só por isso, seus conflitos e erros.

Conforme, ademais, houvesse dissensão entre os pais da menor gestante sobre levar ou não a termo a gravidez problemática da menina, não pareceu de modo algum razoável que os procedimentos para o aborto fossem materializados por iniciativa exclusivamente administrativa do próprio Estado, sem ausculta jurisdicional, mediante o cumprimento devido processo legal para verificação das hipóteses preconizadas na própria Lei Penal de regência (art. 128).

Ora bem, não é compreensível, em princípio, que uma menina que seja capaz de engravidar, tampouco não o seja para parir. Dizê-lo o contrário, embora em sintonia com um modo de pensar subjetivista que parte de um dos progenitores da mesma, e sobretudo sem a segurança de um processo judicial que conferiria inteira transparência ao acontecimento, é atitude temerária que qualifica o ilícito de origem, acaso ocorrente, ainda que a conduta tenha se revestido das melhores intenções. Além disso, o fato do estupro não importa automaticamente a licença para o aborto no caso de uma gestante de menor idade.

O consentimento preconizado na Lei Penal não exclui cônjuge algum dessa participação, ainda que estejam separados e seja um deles titular de guarda exclusiva. A situação de risco em que se demonstrou estar vivendo a menor gestante na companhia de sua mãe e de seu padrasto, importava, seguramente, que o Ministério Público deveria ter sido chamado a opinar, e isso somente seria possível na medida em que se instaurasse um processo regular. É muito curioso que todos tivessem olvidado a necessidade de um pronunciamento judicial a respeito de assunto tão grave quanto delicado e controvertido.

A medicina é ciência de meio. Os riscos da intervenção decorrem do fato em si e não da deliberação dos profissionais da saúde, que não são deuses. Quando esses riscos escapam do ambiente exclusivamente clínico, não comporta aos médicos avaliarem se é ou não o caso de aborto. O caso deveria ter sido imediatamente notificado ao Ministério Público a fim de que adotasse, na ausência de outras iniciativas, as providências legais decorrentes do quadro.

Isto não parece ter ocorrido. Praticado às pressas o aborto – para o gáudio de seus defensores sob o pálio de ilusórias justificações legais de fato inexistentes –, superado o problema pelo modo mais simplista e acomodado que se poderia conceber na situação.

Como visto, o lamentável episódio acaba revelando uma dupla infração: aquela que se refere à correção de como são aplicadas as exceções à punibilidade decorrente da Lei Penal e aquela que se refere aos universais postulados da vida humana, em parte sistematizados pelo Direito Canônico cujas raízes morais e teológicas estão igualmente presentes, em grande medida, nos fundamentos do Estado moderno e do Direito das gentes.

Correto, pois, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, que não foi além do seu próprio ofício eclesiástico ao anunciar a excomunhão dos responsáveis pela prática do aborto em foco. Errados, outrossim, todos quantos, não sendo católicos ou os sendo apenas de fachada, censuraram a autoridade religiosa sem nenhum conhecimento teológico ou mesmo sobre a verdadeira causa da humanidade que decorre da vontade de Deus: “Eu vim para que todos tenham Vida e a tenham em abundância.” (JO. 10, 10)

[1] Cânon 1.399, do Código de Direito Canônico (1983) – “Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae."

[2] Artigo 128, do Código Penal Brasileiro – “Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

http://www.conjur.com.br/2009-mar-07/estupro-licenca-automatica-aborto-menor