segunda-feira, 24 de março de 2008

A caixa de Pandora

Mais um excelente artigo que expõem a complexidade da questão e faz pensar como a ética utilitarista pôde afinal se impor em uma civilização como a nossa, que aprendeu do cristianismo, o valor real de um ser humano.

Luiz Paulo Horta

O Globo, quinta-feira 13 de março de 2008-03-23

O ministro Carlos Alberto Direito, do Supremo Tribunal Federal, pôs a cabeça no pelourinho quando pediu mais tempo para uma decisão sobre as células-tronco embrionárias. A questão ganhou um caráter decididamente emocional, com a mobilização de deficientes físicos, correntes na internet etc. Mas o que o ministro quis dizer, com o seu voto, é que o assunto está longe de ser simples, e envolve decisões de maior gravidade.

Sempre se pode, claro, escolher o caminho da simplificação. Afirmar, por exemplo, que a única dificuldade é que a Igreja Católica, mais uma vez, se põe no caminho da ciência.

Ora, há muito e muito tempo que a Igreja deixou de brigar com a ciência. Comparar, como se tem feito, a polêmica de agora com a história de Galileu é passar longe do alvo. E se fosse só questão de religião, seria bem mais fácil. Os próprios católicos, hoje em dia mostram grande liberdade de comportamento em face dos ditames da Igreja. Roma falaria, mas os fatos seguiriam o seu rumo.

Acontece que, nessa questão das células-tronco, está envolvido um enorme problema ético. Pode o especificamente humano transformar-se em material de laboratório? A tendência – inclusive do Supremo – parece dizer que sim. Mas, nesse caso, estamos transpondo uma fronteira delicadíssima; e não deveríamos fazer esta passagem em gritos de foguetórios

O argumento humanitário é forte: a utilização de células-tronco embrionárias abre caminho para a cura de diversas doenças, para a salvação de muitas vidas. Mas, para isso, é preciso destruir uma vida humana – a do óvulo, que já foi fertilizado, e tornou-se embrião.

O raciocínio científico, nesse ponto, resvala para o sofisma. Argumenta-se que o óvulo fecundado ainda não seria uma pessoa humana, porque ainda não tem cérebro, nem feixes nervosos... Mas no embrião, que é o óvulo fecundado, já existe em potência tudo o que faz uma pessoa humana. E não é por estar abandonado num vidrinho de laboratório que ele deixa de ter esta fantástica potencialidade.

Para a Igreja Católica – e certamente para outras igrejas – há nesse processo, que é um milagre, a marca do sagrado. O argumento corrente, agora, é que estamos num estado laico, e, portanto, argumentos religiosos não valem. Nenhuma dúvida quanto ao estado laico. Mas foi com base naqueles argumentos que se forjou a nossa civilização.

No tempo dos romanos, por exemplo, um escravo era um mero objeto, sujeito a todos os caprichos do seu dono. O conceito de direitos humanos entrou na História pelo viés religioso: coube ao cristianismo, naqueles tempos de ferro, dizer que o escravo, como filho de Deus, era, sim, um verdadeiro ser humano, dotado de dignidade intrínseca à nossa condição.

Modernamente, houve estados totalitários, no Ocidente, que voltaram decididamente as costas ao cristianismo. E, então, pudemos ver como, nesse contexto, a noção de pessoa humana se amesquinha até quase desaparecer. A criatura humana, ali, seria bem ou maltratada de acordo com o seu grau de adaptação ao regime. Nos estados ditos socialistas, os prisioneiros foram usados até o limite de suas forças – isto é, a morte – em obras gigantescas. Os nazistas levaram essa liberdade de ação ao extremo: judeus num campo de concentração não estavam condenados à morte? Por que não usá-los, então, para experiências científicas de toda a sorte, até as mais cruéis? Não se estava, assim, recolhendo informações importantes para o futuro dos que pertenciam ao estado ariano?

Você dirá que isso não tem nada a ver com a discussão de agora. Mas o princípio é o mesmo. O princípio quer dizer: a razão fundadora. Se o princípio está errado, mais adiante os frutos serão decepcionantes. E a razão pura, desvinculada da ética, pode produzir os efeitos mais estranhos.

Dostoievsky, em “Crime e Castigo”, contou esta história. Um estudante talentoso e pobre – Raskolnikov –vive numa casa de pensão, ao lado de uma velha usurária. A velha não tem mais o que fazer da vida. Vive de sugar o sangue dos outros. Seu dinheiro não serve para nada. Raciocina Raskolnikov: que mal há exterminar esse parasita da sociedade, se nas mãos dele, Raskolnikov, aquele dinheiro serviria para coisas tão produtivas? Segue-se o crime; e toda uma longa história mostrando o que aconteceu ao estudante depois do seu cálculo “pragmático”.

No caso das células-tronco, a tendência majoritária parece ser a de embarcar no cálculo pragmático. Mas, assim, abriremos as portas para desenvolvimentos perturbadores, imprevisíveis. Foi o que o ministro Direito quis dizer, com seu voto tão politicamente incorreto.

Luiz Paulo Horta é jornalista.